sábado, 31 de dezembro de 2011

A moral na mão das mulheres




A competitividade entre meninos é algo curioso: algumas vezes aquele que sempre quer ganhar perde, e aquele que nem cogitava da questão acaba pagando de herói. Nem sempre, porém, a situação é dualista dessa forma. Algumas vezes não ganha nenhum dois dois. Há casos em que quem tira vantagem é um terceiro. Neste caso, terceiras. 

Era à tarde, um bom lugar para sublevar – especialmente em Manaus: calor, umidade e agitação. Nesse húmus fornecido ao mesmo tempo pelo clima e pelo peculiar ambiente de escola primária, desenvolviam-se as crianças no recreio como pequenos insetos que, sem risco de coalizão, agitam-se entre si através do solo irregular. Corriam de modo a fazer entrecruzarem-se as linhas imaginárias de suas trajetórias. Houvesse uma visão panorâmica, seria possível enxergar uma teia urdida sem qualquer simetria: cada ser minúsculo confeccionando seu mundo particular, uns em dupla, outros em grupos maiores. Diante desse microcosmo, notava-se um pequenino ser, nádegas numa mureta não muito longe do refeitório, observando a fauna composta por seus pares.

Era Roberto: bochechas grandes, boca e pança do mesmo modo, pele morena, cabelos negros e personalidade prostrada. Não se enturmava o Roberto. E o calor ajudava que isso acontecesse. Sua mãe, excessivamente cuidadosa, detestava que o menino chegasse suado em casa. Ele obedecia na medida do possível – em Manaus, eis uma regra difícil de se seguir! Cumpria sua parte não se envolvendo nas brincadeiras dos colegas. Contentava-se – e menino lá se contenta? – em observar. Usualmente não o abordavam, exceto para pedir esta ou aquela cópia de folha de caderno de suas anotações de aula.

Naquele dia, porém, as coisas não aconteceram como o usual – era à tarde, fazia calor; nada demais, porém o clima favorecia às coisas porem-se de cabeça para baixo. A agitação não era normal.

Momentos antes da cena anteriormente descrita, a campainha soara. A sala vomitara os alunos e, com indigestão, cuspira aquele resto que relutava em ser posto para fora, Roberto. Ao imediatamente colocar os pés para fora, ouvira algo parecido com o seu nome. Coisa estranha, não o chamam pelo nome, soltam no máximo um “vem cá!” Daquela vez, ouvira um “Roberto...”, com reticências e tudo. E para seu espanto, a voz era de mulher – menina, claro, todavia mulher.

– Roberto...

Ele relutava em olhar, com medo de que o som não correspondesse à imagem alguma, como outras vezes já acontecera. Respondeu mantendo o olhar perpendicular à mulher que o invocava:

– Oi.

– Tu joga futebol?

“Como?”, ele pensou, intrigado, cogitando se aquilo era pergunta que se fizesse para alguém que mal saia da sala de aula para ir ao banheiro, quanto mais correr atrás de uma bola e suar feito um porco. Porém, apesar dessas considerações, quem o interpelava era uma mulher; a resposta, portanto, não haveria de ser negativa. Nunca uma mulher o inquirira – exceto a professora gorda e algumas parentes igualmente adiposas –, e justo quando o momento chegara ele não iria responder afirmativamente?

– Não – ele respondeu.

– Tem certeza? – ela insistiu com aquela voz aduladora que só dominam as meninas atraentes que sabem fazer conduzir os meninos onde querem.

– Não – foi sua resposta novamente.

– E quem sabe?

O silêncio foi a resposta.

– Sabe que os jogos escolares estão chegando, não é? E a seleção da nossa sala tem pouca gente. Os meninos que jogam estão machucados, e eu pensei que, de repente, tu poderia substituir algum deles. Se tu não sabe jogar futebol, pelo menos pode ficar no gol. Que tu acha?

– Sabe o que é.

– Não responde agora, tá? Pensa um pouco. Olha, eu vou conversar com os outros meninos. Me espera naquela mureta perto do refeitório que eu já falo contigo – e foi a menina em direção a um canto da área de recreio que Roberto não ousava ir. Foi só quando ele atinou para quem lhe falara.

– Mas é a Suélen! – exclamou em voz alta de modo que a menina já a uma distância razoável ouvira e voltara-se em sua direção.

– Depois agente se fala. Me espera onde eu te disse.

A Suélen, leitor, não era exatamente a menina mais bonita da escola. Não era a menina mais bonita da sala. De modo sincero, da segunda fileira a partir da parede da porta da sala, ela sequer era considerada menina.

“Minha nossa!”, Roberto pensou, “Eu não consegui resistir à Suélen! Claro que eu não vou jogar bola, ainda mais porque. Nem! Quando ela vir me encontrar eu vou dizer que não vou. Se fosse pelo menos a Sara. Mas a Suélen!”

Não é que a Suélen fosse feia. Vá lá. É que se tratava de uma menina masculinizada, ombros e pernas largos e longas. Alta. Gordinha. Traços finos no rosto – é verdade –, que se escondiam por trás de uma expressão quase sempre desleixada.

Foi após o pedido de Suélen que Roberto se dirigiu à mureta e se colocou exatamente como o deixamos alguns parágrafos atrás – observando a fauna composta por seus pares. O menino estava esperando sua colega para que enfim lhe dissesse o “não!” com exclamação e tudo. Porém, quem veio-lhe ao encontro foi outro: Diego, uma espécie de algoz dos socialmente desajustados. A descrição de Diego não importa, esses meninos são sempre iguais

– Vem que tá todo mundo te esperando na quadra. – disse Diego, virando as costas a Roberto, dirigindo-se para o lugar que acabara de anunciar.

– Espera, eu não vou. – Roberto tentou protestar.

– Vamos lá, cara. Tá todo mundo te esperando. – Diego cuspiu sem olhar para trás.

– Não, cara. Eu não vou.

Diego volveu, dirigindo-lhe um olhar de sátiro. Roberto sentiu-se uma ninfa. Seguiu-o.


*

A cena que se desenha agora se dá alguns minutos depois da anterior e se passa exatamente no momento em que Roberto está no gol – olhos esbugalhados, corpo tenso e braços abertos como um cristo em auto sacrifício.

Uma bola vem-lhe na direção, ele fecha os olhos, retorce o corpo como uma árvore de caatinga e ouve um estalo seco seguido de uma dor lancinante no peito esquerdo. 

– Boa, Roberto! – disse-lhe alguém da arquibancada.

Quem lhe dirigira a bicuda fora Diego, que intencionara acertar-lhe na cara, errando por pouco e sentindo-se frustrado por isso.

Logo que recuperou-se da dor e conseguiu olhar para a arquibancada, viu que a voz vinha de Suélen que, como se fosse uma bolinha quicando no chão manuseada por uma criança descuidada, dava pulinhos e gritinhos eufóricos. Roberto achou aquilo estranho e quando fez menção de cogitar algo que explicasse aquele fenômeno – tum! – outra bolada, dessa vez, na boca do estômago. Roberto, curvou-se mais do que manauara sob sol de meio dia. Não teve tempo, porém, de reclamar muito – logo, logo outro tiro do mesmo algoz. Roberto caiu com a mão levada ao rosto.

– Levanta, cara – satirizou Diego – não aguenta brincar, pede para sair.

Foi o que Roberto fez. Chapinhando no chão, posto que temporariamente cego e sem norte. Passou a mão na testa encharcada e lembrou de sua mãe – “Se você chegar suado em casa, vai apanhar” – e murmurou com restos de dor alguma coisa como “M_nha m~e”.

– Ih, lá vai – disse um.

– Espera que ele tá falando alguma coisa – disse outro.

– Tá dizendo o que, Roberto? – socorreu Suélen que lhe veio na direção a fim de assisti-lo.

– Minha mãe! – desabafou Roberto junto com um hálito de dor.

– Ih, chamou a mamãe! – debochou um.

– Ha ha ha – deu corda outro.

Como para começar um vexame público só são necessários três ingredientes: a deixa, o deboche e a risada, deu-se início à avacalhação. Diego a comandou.

– Vai correndo para mamãe, viadinho!

Foi quando Suélen interveio:

– Para com isso, Diego. Não foi tu quem pediu para ele completar o time da sala?

– Eu comentei que tava precisando de alguém, por que tu quebrou o braço e não ia mais poder jogar. Não pedi para te trazer justo o mais bundão da sala.

– O cara tá te ajudando, Diego. Fazer isso para que?

– E tu tá defendendo ele porque?

– Vem, Roberto, vamos deixar esse sem noção para lá.

Roberto gemia de dor. Levantou-se com cuidado, acudido por Suélen e caminhou.

– Vai embora, pançudinha. Vai tu e o teu amigo.

Suélen sentiu cada veia do rosto dilatar-se.

– Aliás, vocês são irmãos? os dois tem a mesma pança – continuou a humilhá-los Diego.

Roberto só queria sair daquele lugar. Com o comentário de Diego, reparou finalmente que de fato Suélen estava com o braço quebrado. Ela, cada vez mais, queria ficar e, por ali mesmo, resolver a questão.

– Fala a verdade: vocês são filhos da mesma mãe, a mesma gorda pariu vocês, não foi?

Aqui, leitor, é o ponto em que nem o mais sangue frio deixaria de borbulhar, tal a temperatura que a frase precedente é capaz de fazer subir num menino – seja ele do sexo masculino ou feminino. E Suélen, de fato, era um menino. No momento que Diego falara a frase desditosa, ele estava a uns dois passos atrás de Suélen e Roberto, seguindo-os à medida que se dirigiam para a saída do ginásio. Suélen não contou conversa, com toda a força que dispunha – fornecida pela raiva e pelo vexame – lançou um gancho de direita e pegou Diego distraído. “Tum!”, no nariz.

– Ai! – um grito agudo e lancinante saiu da garganta da menina: o braço direito era o que estava quebrado. Isso, porém, não impediu que, após o golpe, o nariz de Diego se encontrasse no mesmo estado. E quando um menino é ferido por uma menina se espera dele que haja com bravura, que não reaja e que mantenha a calma. Mas Diego era um brutamontes, apesar de criança. Rústico. Os colegas que presenciaram a situação sabiam que dali não sairia coisa boa. Quando o menino levantou, as duas mãos cobrindo o nariz, olhou em direção à sua inimiga e disparou:

– Você quebrou o meu nariz, sua gorda! – afastou a mão de onde estava e observou que elas estavam cheias de sangue. Seus olhos incharam, sua pupilas encharcaram e água começou a escorrer daqueles dois faróis que os meninos da escola tanto temiam. Diego desandou a chorar como uma criança de primário (Naquela época, já estavam todos no ginásio).

Lembra, leitor, dos três componentes do vexame público – deixa, deboche e risada? Agora a situação se invertera. De um lado, gemendo de dor, Suélen; de outro, choramingando feito criança besta, Diego. No meio, sem que, nem para que, Roberto. Estava suado, pingando, machucado das boladas. Sua roupa estava encharcada. Apesar de tudo o que acabara de acontecer, só conseguia pensar no que aconteceria quando chegasse em casa. Ali, a moral de Diego fora tirada pelas mãos de uma menina. Em casa, a mão de sua mãe tentaria restituir-lhe a moral que acabara de se perder devido sua própria desobediência.

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