terça-feira, 14 de junho de 2011

Golpe de calor

John Cage (1912-1992) descansando


Manaus. Junho. Quase uma hora da tarde. Não árvores; não prédios altos. Ventos, levaram-los todos. Sol: algoz perante uma calçada. Esta: um pelourinho horizontal onde se arrasta, quase prostrado, um vetusto cidadão à procura de sombra. Chicotadas de luz estalam-lhe surdamente nas cotas.

Diante deste cenário, o homem, já prestes ao desmaio, como que por um influxo inconsciente, pôs-se a lembrar de algo bom:

- Bom não me recordo se há. - pensou - Mas melhor que isto, de certo.

E foi assim que veio-lhe à memória a juventude. A cada quadro ou círculo ou triângulo de lembrança, um passo a mais rumo à evolação que lhe tiraria dali. Evolação - palavra alada! - trouxe-lhe o voo que precisava; e com ele o ar, o vento, o vapor. Transportou-se.

No céu de um azul jeans esfarrapado, já não mais uma fogueira se urdia; agora, um bottom amarelo queimado - ainda radiante, porem brando - estava incrustado naquele tecido abobadado. As nuvens - não mais escassas - eram almofadas de retalhos confeccionadas por vós eternas, aquelas que sempre recebem os netos com um sorriso engilhado tão maternal e amoroso quanto amarrotado. Assim era a situação: toda ela um grande enxoval vincado e fofo como há de ser qualquer estofamento com pretensão à conforto.

Naquele tempo, o homem era - como diriam escritores pré-modernistas - um capadócio. Não podia ver donzela que já enxergava arrimo para suas peripécias. Era um Casanova dos arrabaldes. Chegando na periferia, área sua por excelência, nada o impedia. Levava consigo três coisas: a cara, a coragem e a faceirice.

Dia daqueles, predador que era, sempre à eterna caça da sensação de primeira libido, avistou uma gazelazinha. Corpo esbelto, pernas longas, saltitante e - instintiva alegria de todo bom predador! - de mãos dadas com um rival.

Sujeito não muito aprazível o rival: rebarbativo de uma adiposidade excessiva abaixo do maxilar e no espírito; hirto de uma pelugem pleonástica nas bochechas e nas sobrancelhas e de uma dureza e não flexibilidade de porta rangendo; esgazeado com um olhar desassossegadamente inquieto e palidamente azul. Eis a figura que causou ojeriza - não outra palavra - ao outro que já o espreitava de longe, maquinando jeito de o derrubar de uma ponte ou algo parecido.

Não se pode deixar de frizar que a narração anterior é total (ou se diria parcial?), de acordo com a visão interna que do rival tinha o homem. Não era tão feio assim o par da gazela. Mas todo rival, como que sendo parte de uma liturgia de caça, há de ser pintado da forma mais - digamos - esmerada possível a fim de que se torne mais digno de queda, tal qual nossos primitivos ancestrais atestaram em suas gravuras rupestres. Quanto à ojeriza, a palavra, apesar de arcaica - só a escutamos na boca de pedagogas velhas - é a mais adequada. Primeiro por derivar do espanhol ojo, donde o português olho. O que se justifica por ser o sentido correspondente o mais apurado num predador da espécie humana, posto que o primeiro que alerta do perigo. Não fossem os olhos fornecerem imagens com certa antecedência da efetiva presença, a ameaça só seria notada iminente e logo se tornaria eminente, já que não evitável. Segundo porque ojeriza é aquela antipatia gerada por intuição: nada mais encaixável ao caso aqui. Poderia eu, o autor, ao invés, exprimir o caso com sinônimos tais: ou repulsão ou aversão ou abominação etc. Mas, não. Pago tributo à pedagoga velha: vai ojeriza.

Vinha-se aproximando o casal. O homem encostou-se numa árvore para esperá-lo. Passando os dois pela linha imaginária que colocava os três na mesma reta, ouviu-se um som de passarinho. A onomatopeia o leitor imaginará como haverá de ser, que o autor não conheçe muitos sons - e nem precisa, posto que o som nem genuíno foi: o homem o emulou. De qualquer forma, a matreirice serviu: a mulher parou, passou os olhos ao redor, segurou firme a mão do companheiro e indagou-lhe numa curiosidade de gato faminto:

- Onde está

- Não vejo nada. - disse o homem.

- Ali! - encostado à árvore, o matreiro apontou para um pássaro qualquer no lado oposto da praça.

- Onde, meu senhor? - a mulher, ávida, notando quem lhe indicava.

- Está vendo aquele danado, alí, ó? Voou para lá logo após cantar; antes um pouco de vocês chegarem. - respondeu.

- Vá pegá-lo para mim? - indagou a mulher com aquela languidez juvenil que, aos ouvidos de mais idade do parceiro, era um enlevo ordenatório.

Este não contou conversa: foi. No que ficaram os dois a sós.

- A senhora gosta de passarinho? - perguntou o que ficou, com segundas intenções.

- Gosto muito. - a mulher sussurrou, fornecendo uma dica que ficou no ar.

A partir desse momento, o cenário começou a ficar nebuloso. A visão do homem começou a trai-lo, e ele caiu no chão. Abriu os olhos: a roupa suada, a costa grelhada, a mão enrugada. Estava novamente na fantasia. Suspirou fundo e pensou algo que se perdeu no mormaço. Nunca antes alguém desejou tanto voltar à realidade.

2 comentários:

Augusto Lima disse...

Com um mormaço desses qualquer cérebro agoniza, definha.

ROGEL DE SOUZA SAMUEL disse...

no frio do Rio, hoje, bem que sinto saudades de Manaus...