quinta-feira, 2 de junho de 2011

A objetividade da memória no depoimento da testemunha

A persistência da memória de Salvador Dalí

Vitor Lima, acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas

A temática da memória da testemunha está inserida no contexto maior da Psicologia do testemunho. Esta começa quando alguém experiencia um fato ou ato de relevância para o Direito. O problema maior que se tem – em relação ao aspecto jurídico-processual, tendo em vista que a testemunha é considerada um meio de prova (art. 212, CÓDIGO CIVIL) – é a delimitação da possibilidade do depoimento verossímil. Em se tratando desse aspecto, é costumeiro levar-se em conta quão objetiva a narração testemunhal pode ser considerada – quanto mais objetiva, mais confiável.

A confiabilidade da memória, isto é, seu grau de objetividade depende de vários fatores; aqui, trataremos esse tema sob um ponto de vista epistemológico. Se a memória for compreendida como um aparato mental (sujeito) que, através de reminiscências – à moda do platonismo –, trás à tona um fato puro (objeto); adota-se, então, uma posição que afirma ser possível o depoimento objetivo, independente do caráter subjetivo, já que a verdade independe do sujeito. Se, por outro lado, nega-se a independência do fato puro e entende-se que o processo de cognição se dá através de interpretação que ocorre tanto na cognição dos acontecimentos quanto na formação da memória (e, por conseguinte, da rememoração), então tem-se que o depoimento objetivo puro não é possível, restando uma dose predominante de subjetivismo.

Quando se adota um ponto de vista epistemológico objetivista, acredita-se que os fatos existem de modo independente do sujeito cognoscente. Parte-se, portanto, da concepção de que o fato puro é possível, de que a verdade é única; se há erro, é em decorrência de algum ruído comunicacional produzido pelo sujeito – a testemunha, no contexto aqui analisado. Quem adota esse posicionamento faz perguntas do tipo “A testemunha pode comunicar o significado real de um acontecimento?”, ou ainda “A testemunha possui habilidade apropriada para observar um acontecimento?”. Em relação ao aspecto jurídico-processual – posto que, para essa posição, a verdade é única – busca-se verificar se há correspondência entre o que a testemunha relata é o que realmente aconteceu.

Quanto se adota a outra posição, a de que não há objeto independente do sujeito, não se busca a correspondência do que é alegado pela testemunha com os fatos. Isso porque não se leva em consideração o fato – entendido epistemologicamente como o objeto puro que independe do sujeito cognoscente. Nessa perspectiva, é antes considerada a lógica interna do discurso apresentado. Pergunta-se, então, algo como “As afirmações da testemunha parecem muito improváveis? Contrariam as leis da física ou entram em conflito com os dados que já se possui?”; ou ainda: “Há alguma contradição interna no depoimento?” Poderia ser levantado como objeção a esse panorama que, por conceder primazia ao sujeito, admite a introdução de distorções nos fatos. Como resposta a esse questionamento, poderia-se dizer que ele baseia sua contraposição na existência do fato – epistemologicamente entendido como o objeto puro. Uma vez que a posição que dá primazia ao sujeito não o reconhece, não há o que questionar. De modo efetivo, o que a posição contrária não admite é que não há fato em si (tal qual a Forma platônica). Não há um fato a espera de quem o conheça; há a construção intersubjetiva do mesmo. Não há distorções; poderá, sim, haver, contradição interna, incoerência.

De fato, para a prática jurídico-processual, esse último aspecto é mais útil. Uma vez que ali a verdade é antes argumentativa e justificatória que uma correspondência com o “mundo real”, não há utilidade em se falar em fato, mas em argumentação mais convincente. Essa ideia é comumente expressada pelo brocardo “o que não está nos autos, não está no mundo”. Com efeito, não há como a autoridade pública ter acesso ao que um objetivista chamaria de “o modo como as coisas são” ou “a realidade como ela é”. Esses termos são indiferentes à jurisdição. Então, cabe às partes a apresentação de argumentação persuasiva com a finalidade de que sua pretensão seja considerada verdadeira e, por conseguinte, seja deferida. Persuasão entendida como o uso de todos os meios lícitos disponíveis – apresentação de meios de prova, ação processual tempestiva, escrita elegante etc – para que seja alcançado uma reivindicação. A verdade, então, não é considerada como algo único, à espera de um sujeito cognoscente que lhe apresente de uma forma comunicacional perfeita. Ela é antes construída de forma que mais satisfaça às necessidades do que se busca obter.

Voltando à problemática da testemunha, já que não há verdade objetiva – no sentido epistemológico positivista –, então há de se cuidar das condições em que se dá o depoimento testemunhal, de modo a assegurar-lhe a coerência. De modo esquemático, podemos resumir o processo de relato de uma testemunha desta forma:
Em primeiro lugar, obviamente, o individuo percebe um determinado evento. A seguir, a experiencia fica armazenada em sua memória. A terceira etapa ocorre quando a pessoa busca acessar as informações retidas em sua memoria. Para que um testemunho seja obtido, não basta apenas haver uma lembrança do evento, e preciso que o individuo possua habilidades para expressa-lo de alguma maneira compreensível. Logo, a quarta etapa envolve a capacidade do sujeito de comunicar aquilo que esta retido em sua memoria. (FEIX, 2009, p. 10)
É a partir dessa quarta etapa que entram aspectos que, de modo propriamente psicológico, podem interferir no bom andamento do depoimento confiável. Itens externo e interno podem ser citados. Quanto ao primeiro, tem-se, por exemplo, a intimidação, o tempo e o lugar da declaração, os instrumentos de gravação adequados. Quanto ao segundo, tem-se, de modo relevante, a intenção da testemunha ao depor; é válido perguntar, então, algo como “A testemunha é indiferente ao que está sendo relatado, então provavelmente não distorcendo os fatos?” Há uma pesquisa nesse sentido, publicada na Applied Psychology in Criminal Justice, que procedeu deste modo: “Participants watched a videotape depicting a street robbery and completed a questionnaire relating to their recall of the stimulus.”1 E depois, de modo previsível, chegou-se a esta conclusão:
[the] recall would be biased as a result of motivation to reduce threat posed by viewing a similar victim not engaging in culpable behavior. Results showed that those who viewed a similar victim who was not culpable tended to exaggerate the distance between the criminal and the victim and the duration of the incident. The results are consistent with the assumption that such biased recall allowed participants to reduce the threat by blaming the victim for not taking advantage of the opportunity to avoid the victimization. (MARSH, 2006)2
 A visão que a testemunha tem da vítima influencia na narração do fato; o aspecto interno tem grande influência sobre a objetividade de seu depoimento. Quanto à influência externa, podemos citar outra pesquisa, publicada na Cognitive Psychology. Um dos exemplos mostrados no estudo é este, citando Harris, R. J.:
His subjects were told that “the experiment was a study in the accuracy of guessing measurements, andthat they should make as intelligent a numerical guess as possible to each question” (p. 399). They were thenasked either of two questions such as, “How tall was the basketball player?”, or, “How short was the basketballplayer?” Presumably the former form of the question presupposes nothing about the height of the player, whereas the latter form involves a presupposition that the player is short. On the average, subjects guessed about 79 and 69 in. (190 and 175 mm), respectively. (LOFTUS, 1975, p. 1 e 2)3
Prosseguindo, outro estudo similar é apresentado:
For example, “How long was the movie?”, led to an average estimate of 130 min, whereas, “How short was the movie?” led to 100 min. While it was not Harris’ central concern, his study clearly demonstrates that the wording of a question may affect the answer. (Idem, p. 2)4
O vocabulário de um questionário pode influenciar na resposta de uma testemunha; o aspecto externo não deve ser desconsiderado na hora da aferição da objetividade do depoimento. Quanto ao outro aspecto propriamente psicológico, ficou demonstrado que o aspecto externo também é determinante.

Dessa forma, argumentamos que não há, relativamente ao contexto jurídico-processual, que se preocupar com a verdade. Esta entendida epistemologicamente do ponto de vista objetivista. A preocupação que se faz útil é quanto à justificação mais adequada para conseguir a persuasão do poder público para que defira a pretensão. Isso não significa abrir mão da objetividade e dar acesso a uma distorção dos fatos. Estes não são mais entendidos como realidade independentes do sujeito cognoscente, mas como uma construção dele. Partindo dessa concepção, há de se cuidar das condições em que se dá o depoimento testemunhal; aqui são levadas em consideração as questões propriamente psicológicas. Itens internos e externos ao sujeito/testemunha são considerados, nenhum deles menos relevante que o outro. Para entender melhor a objetividade da testemunha – entendemos – esses conceitos precisam ser cada vez mais manuseados e aplicados na prática jurídica.

Referências

BRASIL, República Federativa do. Lei n° 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm.

FEIX, Leandro, PERGHER, Giovanni, STEIN, Lilian. Desafios da oitiva de crianças no âmbito forense. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidencia da Republica, 2009. 77p. Disponível em http://www.iin.oea.org/iin/Novedades%20de%20los%20Estados/Brasil/Livreto%20Simposio%20Internacional.pdf.

LOFTUS, Elizabeth F. Leading Questions and the Eyewitness Report. Cognitive Psychology, 1975, 7, 550-572. Disponível em http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.89.2703&rep=rep1&type=pdf

MARSH, David P. and others. The Influence of eyewitness similarity to a crime victim and victim culpability on eyewitness recall. Applied Psychology in Criminal Justice, 2006, 2, 1, 44-56. Disponível em http://www.apcj.org/documents/2_1_eyewitness.pdf.


1“Os participantes assistiram a um vídeo mostrando um assalto na rua e completaram um questionário relatando suas recordações a respeito desse estímulo.” (tradução nossa)


2“[o] relato seria tendencioso, como resultado da motivação para reduzir a ameaça representada pela visão de uma vítima não engajada na pratica de um comportamento culpável. Os resultados mostraram que aqueles que viram vítimas similares que não eram culpáveis tenderam a exagerar não só a distância entre o criminoso e vítima, como a duração do incidente. Os resultados são consistentes com a hipótese de que tal relato permitiu aos participantes reduzir a tentação de culpar a vítima por não aproveitar a oportunidade de evitar a vitimização.” (tradução nossa)


3“Seus estudos informaram que "o experimento foi um estudo sobre a precisão das medições de adivinhação, sendo que deveria ser feito como um palpite inteligente numéricamente possível para cada questão"(p. 399). Eles foram, então, inquiridos com duas perguntas, tais como "Qual alto era o jogador de basquete?", ou "Quão pequeno era o jogador de basquete?" Presumivelmente, a primeira forma da pergunta pressupõe nada sobre a altura do jogador, enquanto a última forma envolve um pressuposto de que o jogador é pequeno. Em média, os palpites variavam entre 190 e 175cm, respectivamente.” (tradução nossa)


4“Por exemplo, "Quão longo foi o filme?", levou a uma estimativa média de 130 min, enquanto que, "Quão curto foi o filme?"levou a média de 100 min. Enquanto ele não era a preocupação central de Harris, seu estudo demonstra claramente que o texto de um questionário pode afetar sua resposta.” (tradução nossa)

Um comentário:

Augusto Lima disse...

Daí a necessidade de se pensar o Direito, tratá-lo à luz da subjetividade humana, não apenas sua objetividade manuseada, construída.

Parabéns pela brilhante argumentação!!!