terça-feira, 6 de setembro de 2016

Crianças, animais e nossa sensibilidade burguesa



Aspectos marcantes distinguem a sensibilidade aristocrática da sensibilidade burguesa. O modo como nos transformamos para nos importar mais com nossos filhos e animais é ilustrativo. Se antes nossos hábitos requisitavam que fôssemos altivos e duros, hoje nossos costumes pedem que sejamos reservados e tenros. Ao menos no âmbito doméstico.

Inicio com a proximidade entre pais e filhos, no Antigo Regime. Na família aristocrática, ela é quase inexistente. A educação dos rebentos não se dá no seio familiar. Inicialmente, famílias da mesma estirpe mantêm os filhos de outras sob sua guarda, iniciando-os no mundo das armas e da equitação. Os aprendizes, em troca, prestam serviços diversos, como a escuderia. A educação, assim, não se dá necessariamente na escola formal, mas entre pares. Sem falar que a aprendizagem de ofícios manuais e mecânicos é desonrosa.

Mas chega o tempo, porém, em que o aristocrata se afasta da carreira de armas. Então, um novo modelo de educação emerge: a conversação elegante e a discrição. O rei, com seu poder cada vez mais ameaçado, atrai para a vida da corte a aristocracia. Com isso, cria a dependência financeira entre o cortesão e o erário real. E, assim, paulatinamente, afastam-se nobreza e passado guerreiro.

Em contraposição, no modelo burguês de educação, a infância é o centro. Nesse projeto, a criança simboliza o futuro. Garantir sua segurança é contribuir para que um estilo de vida que acabou de surgir aumente suas chances de se perpetuar.

Outro aspecto notável é que a moradia burguesa é medianamente menor que a aristocrática. Isso permite melhor controle das ações em seu interior. Possibilita também um melhor controle do aseio sobre todos os cômodos e todos os moradores, bem como alimentação mais regrada. Nesses moldes, também nasce um conceito chave no universo cultural burguês: a privacidade. Em sua arquitetura, há corredores que permitem portas que não só delimitam recintos, como os separam entre si.

Na modernidade, o quarto se torna o símbolo da estruturação da subjetividade humana. Os filhos passam a ser separados, um em cada recinto, por gênero. Há também o quarto do casal e a sala de estar que reúne a todos. Nesta casa, há espaço também para o animal doméstico, que muito auxilia no desenvolvimento dos afetos.

A relação entre animais e seres humanos é bem distinta entre aristocratas e burgueses. Estes cultivavam cavalos de equitação, galgos de caça e aves de rapina treinadas para o ataque e para torneios. Aqueles retiram o animal do quintal e permitem a ele que adentre a casa. Cachorros e gatos são os preferidos. Animais domésticos se tornam bichos de estimação. Bichos de estimação se tornam amigos e companhia. Em qualquer cômodo, alojam-se no colo dos donos e brincam com as crianças.

Na ascensão burguesa, assim, surge uma sensibilidade mais compassiva. O sofrimento passa a comover mais. Fala-se em solidariedade, e animais não humanos passam a ser humanizados.

Posto isso, quando o assunto é direitos a animais não humanos, tendo a pensar que não é preciso argumentar filosoficamente. Por argumento filosófico, aqui, entendo o tipo de argumento cujo objetivo é estabelecer um critério que sirva como pedra de toque para saber se uma ação é ou não universalmente correta ou errada. Uma vez que investigamos nosso panorama histórico, tendo a dizer que isso já é o bastante para que percebamos que nossa sensibilidade já está alargada e que negar direitos a amigos é algo que já não condiz mais com o nosso projeto de ser humano. É antes uma questão de lealdade que de justiça. Ou, se preferir, é uma questão de justiça como lealdade ampliada, como formulou Richard Rorty.

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Texto inspirado em AMBIRES, Juarez Donizete. "Infância e um pouco de adolescência na visão sócio-literária do século XIX" In: Revista Conhecimento Prático -- Literatura, edição 66, Editora Escala, p. 18-23.

Um comentário:

Augusto Lima disse...

Saindo do puro utilitarismo para um comportamento mais elaborado...