terça-feira, 31 de março de 2015

A conversa da filosofia e a conversa da sofia




Todos sabemos que os velhos são sábios. Eles já percorreram o caminho que os jovens, muito provavelmente, percorreremos. Escutá-los, então, é vantajoso. O que torna essa vantagem mais acessível ainda é outra característica que eles – com a exceção de Seu Lunga – partilham: o gosto pela conversa. Céfalo, pai do ilustre sofista Lísias, é um velho que entrou para a história da Filosofia por partilhar desse gosto.

No início do Livro I, da República de Platão, Céfalo descreve assim sua afinidade: “na medida em que vão murchando para mim os prazeres físicos, nessa mesma aumentam o desejo e o prazer da conversa” (328d). Sócrates, que também era um amante de discursos, não deixa escapar a oportunidade e inicia o que ele mais gostava de fazer: o jogo de fazer perguntas e escutar respostas.

Sócrates pede o parecer de Céfalo sobre a velhice, se ela se trata, como dizem, de uma parte custosa da existência. Por sua vez, Céfalo lembra que é bem verdade que os velhos, quando reunidos, põem-se a lamentar com saudades dos prazeres da juventude, dos gozos do amor, da bebida, da comida. Porém, citando um dito de outro velho, o tragediógrafo Sófocles, recorda que uma das grandes vantagens da velhice é justamente a possibilidade de se livrar de um “amo delirante e selvagem”.

Essa imagem forte usada por Céfalo refere-se ao corpo e as suas afecções, em contraposição à moderação da parte racional da alma. Na doutrina platônica, é mais sábio aquele que menos se deixa influenciar pelo corpo e tudo o que dele deriva – desejos incontroláveis de comer, beber e foder, por exemplo, todos tão exigentes e vorazes com um bando de “déspotas furiosos”, outra imagem forte usada no diálogo. Céfalo encarna essa sabedoria porque soube chegar à velhice, sem as reclamações saudosistas do corpo, através não de qualquer dom especial ou riqueza material, mas sim através da prática da moderação.

Nesse trecho da narrativa de Platão, o velho é o sábio, ou seja, aquele que passou por todas as experiências da mocidade e, uma vez na velhice, através da prática da moderação, não mais se deixa afetar pelo delírio e pela selvageria do corpo. Livre desse tirano, há espaço para atividades mais nobres, como a conversação. Porém, há um problema. Céfalo que tanto alegara gostar de conversar, após algumas frases, foge da conversa. Por que?

O objetivo maior da República de Platão é discutir filosoficamente a justiça. Céfalo, em termos narrativos, cumpre o papel de inserir a primeira tese a ser discutida, a saber, a de que a justiça é “dizer a verdade e restituir aquilo que se tomou” (331d). Sócrates logo encontra um problema ai e refuta a tese de Céfalo com um exemplo: “se alguém recebesse armas de um amigo em perfeito juízo, e este, tomado de loucura, as reclamasse, toda a gente diria que não se lhe deviam entregar, e que não seria justo restituir-lhes, tampouco consentir em dizer toda a verdade a um homem nesse estado” (331c). Céfalo, então, refutado, sai pela tangente – “Eu, por mim, faço-vos entrega da discussão, pois tenho de ir tratar do sacrifício [aos deuses]”. A conversa mudou de característica: mudou de um simples jogo de perguntar e ouvir respostas para um jogo de pedir e fornecer razões.

O sábio, ao contrário do filósofo, não se insere no último jogo. O filósofo, ao contrário do sábio, só sabe jogar se, uma hora ou outra, o primeiro descambar para o último. O sábio e o filósofo, ambos gostam de conversar. Só o filósofo, porém, ama verdadeiramente os discursos. E não por um contato maior com o discurso verdadeiro, mas por uma disposição maior para refutar e ser refutado, no lugar de ensinar e aprender. Amar ou é estar preparado para todas as consequências que derivam da relação com o objeto de amor ou não é. Preferir algumas e não outras é, no máximo, "achar legal".



2 comentários:

Natan Vieira disse...

Gostei do texto. De fato pude notar na primeira interação com vocês(Veteranos do curso) a disposição de ouvir, refutar e ser refutado, quando pude falar de minhas crenças pessoais. Isto é fantástico na Filosofia! Poder discutir, ouvir, aprender e se deliciar nas ideias...

Augusto Lima disse...

Haja competência!!!
Parabéns! Texto primoroso.