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Nelson Rodrigues com a atriz Lea Garcia, encenando "Perdoa-me por me traíres" (1957) |
As
estórias de Nelson Rodrigues fizeram sucesso primeiro enquanto literatura
veiculada em jornal – seja como folhetim, seja como crônica
ficcional. Só depois, elas ganharam um apelo geral na
teledramaturgia e na pornochanchada. Os títulos de Engraçadinha
(1995) e A vida como ela é... (1996)
– minisséries da Globo – são retirados,
respectivamente, de seu romance-folhetim Asfalto Selvagem (1965)
e de suas crônicas homônimas
publicadas na década de 1950, no jornal Última Hora. O argumento da
película A Dama
da lotação (1978) também foi
retirado de uma de suas crônicas de A vida como ela é...
Sabemos
que é por essa via indireta que conhecemos
Nelson Rodrigues. Temos alguma noção difusa de que ele é um autor
importante. Alguns artistas, para parecerem inteligentes, até
bradam: “Nelson Rodrigues é o Shakespeare brasileiro!”. Mas não
sabem o porquê. Sabem que gente inteligente gosta dele, apesar de
terem ouvido falar que ele é pornográfico e
que toca em assuntos polêmicos
como traição,
estupro, incesto
e assassinato. Alguns
de nós que crescemos na década de 1990 talvez tenhamos visto alguma
minissérie baseada em sua obra e nos deliciado com Cláudia Raia
interpretando uma de suas heroínas. Talvez. O que está no
imaginário de nós brasileiros é mesmo este Nelson: o indireto da
TV e do cinema e o popular do jornal.
Alguns se
utilizam desse imaginário para atacá-lo pela via moralista.
Jugam-no da mesma forma que o julgaram os conservadores das décadas
de 1940 e 1950, como um “tarado”. Outros o atacam da mesma forma
que o atacaram os progressistas das décadas de 1960 e 1970, como um
“reacionário” (Nelson apoiou a Ditadura Militar; até seu filho
ser preso por ela...). Mas há quem hoje lhe apresente reservas por
nenhuma das duas vias anteriores. Fazem-no, sim, por outras duas:
indiretamente, pela interpretação que dele possam ter os
conservadores atuais e diretamente, por ele ter sido alguém que não
foi original. Meu amigo, o filósofo Paulo Ghiraldelli, é um
exemplo. Em pelo menos três de seus textos aparecem objeções a
Nelson. Tratarei deles aqui:
Que fique claro que mulher não gosta de apanhar,
Por que mulher precisa ser encoxada? e
Nietzsche adorava sexo!
Agora,
independentemente de Nelson, sei bem que em tempos conservadores um
engraçadinho qualquer pode muito bem colocar essa frase “mulher
gosta de apanhar” em um seu ensaio, para vender para velhotes
reacionários, analfabetos funcionais e senhoras que acham culto
tomar chá falando mal do governo porque fez leis trabalhistas para
suas domésticas. Esses conservadores são de um tipo especial. São
aqueles que as feministas, às vezes de maneira tão tola quanto
eles, vão chamar de “machistas”. Pronto, está armado o circo.
Sabemos bem o quanto o
que está descrito por Ghiraldelli pode acontecer e de fato acontece.
O seu diagnóstico mais à frente é certeiro:
Mulher
não gosta de apanhar. É o que é preciso falar para essa direita e
essa esquerda que ficam disputando entre os “politicamente
corretos” e os “politicamente incorretos”. Pois antes
dizer isso de uma vez que tentar explicar Nelson Rodrigues para
cabeças de bagre.
Existe
algo pior que uma estória mal contada, que é exatamente explicar
uma estória que não precisa de elucidação alguma. Quem leu a
crônica
A esbofeteada de Nelson Rodrigues sabe do que se
trata. Aliás, nem é preciso se dar ao
trabalho de ler –
porque, ao final de contas, ler é um trabalho!
–, basta que se assista à pequena esquete baseada no texto feita
para a TV, parte de um dos capítulos de
A vida como ela é...
da Globo. Está disponível no
Youtube. Nesse ponto, concordo com
Paulo. É melhor dizer logo que mulher não gosta de apanhar que
explicar o que Nelson queria dizer quando escreveu o seu texto e blá,
blá, blá...
“Encoxar
e ser encoxada ou encoxado na multidão ou nos confins de um quarto
sujo de uma construção é cena de Nelson Rodrigues, e por isso eu
não o vejo como escritor genial. Antes dele isso já era cliché
(1).”
Na nota de rodapé
anunciada acima, está escrito:
“Nelson
é genial no sentido de provocador psicológico de quem o lê, aí
sim. Ele mostra que qualquer um de nós pode querer violentar uma
garota ou fazer coisa pior. O êxito das suas peças mostram
exatamente isso: quem vê ou lê se trai ao ver duas vezes e se
excitar.”
Paulo diz
que Nelson é e não é um escritor genial – em diferentes
acepções, claro. Ele não é um escritor genial quando é clichê e
é um escritor genial quando é um provocador psicológico. Nesse
ponto, concordaria inteiramente com Paulo, se eu não pensasse
exatamente o contrário. Nelson é genial exatamente no clichê e não
é genial exatamente na provocação psicológica.
Sua
provocação psicológica é da mesma profundidade de uma notícia de
jornal sensacionalista. Aparentemente, pratico aqui uma heresia,
tenho plena convicção. Porém, não me acuse o leitor de não ter
lido dramaturgias como Doroteia (1950),
Anjo Negro (1946) ou Senhora dos Afogados (1947),
por exemplo, que apresentam estruturas internas e símbolos que
remetem às mais bem elaboradas tragédias de todos os tempos – de
Ésquilo a O'Neill. O que quero dizer de sua provocação psicológica
é que ela é tão corriqueira no que traz de conteúdo quanto o
jornal de grande circulação ou as tragédias gregas que, ainda que
clássicas, já estão mais que entranhadas no imaginário popular.
Os jornais mais baratos sempre trouxeram o que Nelson traz – ele
próprio sendo fruto desses jornais. Não preciso ler uma obra sua
para me sentir provocado psicologicamente quanto ao conteúdo que
leio. É só ligar a TV ou ler o jornal e, claro, não estar
adormecido pela crueldade do dia a dia. É isto que quero dizer: não
é ai que está a sua genialidade.
Porém,
Nelson Rodrigues nunca teve outra pretensão que não a de ser um
clichê. Isso não é segredo para ninguém. Corrigindo: para ninguém
que o lê e sabe razoavelmente como se deu sua malfadada vida. Sua
genialidade não consiste em apresentar conteúdo novo. Sua formação
é de jornalista sensacionalista, seja na área policial, seja na
área de esportes, enveredando, por vezes, até na área de conselhos
amorosos – sob pseudônimo feminino até: Suzana Flag (hoje,
Nelson não teria o menor pudor de fazer uso de um perfil fake
no Facebook). Sua obra inteira reflete essa formação. Esperar dele
algo diferente do popular no que ele tem de mais repetitivo é não
entendê-lo. O que é genial é a forma como é apresentado, e não o
conteúdo de todo esse fluxo de banalidade.
Duas, no
mínimo, foram as inovações estilísticas introduzidas por ele na
dramaturgia da época: o diálogo entrecortado, truncado, ligeiro e
de vocabulário popular e a quebra do fluxo temporal e do espacial
tradicionais das narrativa até então. Nelson ensinou a todo
brasileiro que queria escrever dramaturgia como se escreve um bom
diálogo. É notável sua influência nos textos que lhe sucederam
até os dias de hoje. Sua primeira peça de sucesso, Vestido de
Noiva (1941), é um exemplo típico do que estou falando.
O leitor
já imaginou escrever uma história com o seguinte argumento: uma
irmã rouba o marido da outra, que morre atropelada? Sim, é só
isso. Quer coisa mais banal que isso, da profundidade de uma manchete
de jornal sensacionalista, como eu já houvera dito? Pois, é. Mas
foi essa peça que inventou o teatro brasileiro. E não foi o que ela
trouxe de provocação psicológica ou de novidade de conteúdo, mas
o que ela trouxe de banal sendo contado de um modo em que só um
autor genial o faria. A história se passa em três planos:
realidade, memória e alucinação. São 32 personagens, muitas vezes
um ator tendo que encenar mais de um papel que, em questão de
segundos, tem que se transformar em outro. Os três planos se
sobrepõem, se cruzam e se confundem. Mesmo hoje esse estilo de narrativa não apresentando mais novidade nenhuma, Nelson, na estreia, teve que
ler um texto, momentos antes do início do espetáculo, indicando o
que iria acontecer. Após essa noite, nós brasileiros já tínhamos
como dizer: “Tal qual outras nações tem os seus dramaturgos, nós
também temos o nosso.”
Nelson
imortalizou-se ali – ali conquistou seu lugar no panteão dos
gênios brasileiros. Poderia não fazer mais nada, mas sabemos todos
que ele não parou em Vestido de Noiva e produziu outras
tantas obras primas – particularmente, a minha preferida é Boca
de Ouro (1959), que não só
contém as duas características por mim mencionadas, como tem
compromisso somente com aquilo que só um escritor genuíno deve se
preocupar: com a estória bem contada.
Nenhum
bom escritor é bom escritor porque traz conteúdo novo. Pode ser,
mas isso não é determinante. Nem o triunvirato dos tragediógrafos
gregos, nem o próprio Homero, nossos arquétipos de escritores,
inventaram o conteúdo de suas estórias. Elas já se constituíam em
enredos conhecidos pela plateia no momento de sua representação,
teatral ou rapsódica. Sempre foi a forma que uma estória é contada
que fez a diferença. A genialidade de Nelson não poderia estar em
outro lugar, portanto.
Mas
será que Nelson nem contar uma estória
sabe? Ghiraldelli, em Nietzsche adorava sexo!,
faz uma comparação, dizendo que
Nelson
Rodrigues nunca revelou algo interessante sobre o comportamento
humano. Nadinha. Não se é um escritor da “natureza humana” por
ser escroto, ainda que se possa ser genial sendo um escritor escroto.
Enquanto
que
Rubem Fonseca é
diferente. Aí sim há alguém capaz de falar do drama humano. Aliás,
Rubem Fonseca é tão bom que ao falar dele como quem é um escritor
da “natureza humana”, tenho vontade de utilizar essa expressão
sem o uso das aspas, como se faria ou se fez no século XVIII ou
mesmo XIX. Ele é genial para além do que um escritor é aceito como
genial. É um escritor nota dez porque diz que vai terminar um conto
de uma tal maneira e, cumprindo o prometido, ainda assim consegue
surpreender.
Ghiraldelli
acredita que a “capacidade de Rubem Fonseca de escrever de modo a
não poder ser aproveitado por nós, filósofos, é o que o põe uma
esquina a mais em relação a Nelson Rodrigues.” Em outras
palavras, Fonseca não dá aquele ar forçadamente “filosófico”
aos seus escritos, como sabemos que vários escritores dão, só para
figurarem como escritores cult. Mas, espera... Nelson faz isso? Não
estaria Ghiraldelli antes atacando um pastiche de Nelson Rodrigues
que de fato a obra que lhe faz jus? Ao meu ver, parece ser exatamente
esse o caso.
Em seus
três textos que agora comento, o tema central que faz Nelson ser
invocado é a mulher. A frase: “mulher gosta de apanhar”. Mas
acontece que Nelson nunca disse isso em sua obra literária querendo
atestar a “natureza” da mulher. Mesmo quando ele completou com a
pérola “Só as normais” (o que aconteceu, inclusive, em um
programa de TV, não em um de seus livros), mesmo ai o que ele estava
fazendo era nada mais que uma anedota, no máximo um comentário
provocador, não filosofia moral. Nelson nunca se erigiu como um
escritor da alma humana. Nelson retratava obsessões, não o sexo ou
o amor. Dentre as obsessões, estavam o sexo e o amor, mas ele nunca
foi um escritor erótico ou romântico. Diziam-lhe freudiano. O que Nelson conhecia de Freud é o mesmo que Valesca Popozuda conhece quando diz a palavra recalque. Pediam-lhe para explicar suas peças, para clarificar se de
fato tal e qual referência que lhe haviam imputado fazia sentido.
Nelson retorquia que isso era trabalho de críticos, não dele.
Nelson nunca leu Marx, mas isso não lhe impedia de dizer, de birra,
que “Marx é uma besta”. Nelson era um ficcionista, não um
escritor de metanarrativas. Se um filósofo ou outro dizem que ele
fazia isso, pior para esse filósofo e para esse outro. Penso que não
o entendeu.
Talvez, e
isso é uma hipótese, meu amigo Paulo Ghiraldelli esteja atacando
Nelson Rodrigues antes pela ótica que dele apresenta o filósofo
Luiz Felipe Pondé que pela sua literatura própria. Pondé lançou
seu último livro, A filosofia da adúltera (LeYa,
2013), inspirado em Nelson, mas antes disso já houvera
confeccionado artigos sobre o dramaturgo. Só um filósofo leria
Nelson dizendo que este fala da condição humana. Só um filósofo
enxerga, em um autêntico ficcionista, um escritor da “natureza
humana” – Não teria caído neste mesmo erro o próprio
Ghiraldelli ao falar sobre Rubem Fonseca acima? Talvez, caso Nelson
estivesse vivo, vaidoso que era, seria-lhe do agrado toda essa
disputa de filósofos com livre trânsito pela imprensa falando sobre
sua obra. Mas duvido que sobre isso ele tivesse algo mais a declarar do que repetir Fernando Pessoa, através de seu heterônimo Alberto
Caeiro:
É preciso também
não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não
há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de
nós, como uma cave.
só uma janela
fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se
poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que
se vê quando se abre a janela.