Leonardo Boff |
Há
uma doença no meio intelectual que o torna motivo de zombaria.
O efeito principal dessa moléstia é fazer com que um
autor cite outro a fim de parecer mais erudito, sem se importar se o
excerto utilizado se ajusta ao todo argumentativo de seu próprio texto ou se
o fragmento referido não contraria o pensamento macro do
pensador referenciado. Dentre os citados, Nietzsche consta com certa frequência, talvez devido ao caráter
aforismático de sua obra, aberta à polissemia. Afetado
pela doença e, por isso mesmo, querendo parecer inteligente,
um autor cita Nietzsche. E é desse ato que surge o nome para a
enfermidade inflamatória das faculdades mentais: a
citanietzsche.
Sejamos
condescendentes: não é preciso ser um intelectual
medíocre para ser pego pela citanietzsche. É
mesmo possível que um autor distinto contraia esse achaque sem
se dar conta. Talvez isso tenha acontecido com Leonardo Boff. Em artigo publicado ontem (19/07), em
seu Blog, intitulado Festejar: é afirmar a bondade da vida,
Boff recorre a Nietzsche algumas vezes para avalizar sua tese que é
a seguinte: “pelo fato de havermos perdido a jovialidade, grande
parte de nossa cultura não sabe festejar”. As noções de festa e de jovialidade pretendem ser tributárias
do pensamento de Nietzsche. Aliando isso ao título do artigo de Boff
– em que se encontram outras duas palavras-chave, i.e., bondade e vida –, é
possível ponderar se Nietzsche foi mesmo uma escolha sensata
para acompanhar sua reflexão ou se estamos diante de mais um
grandioso escritor acossado pela citanietzsche.
Boff
entrelaça seu discurso da seguinte forma. Inicia por
introduzir o efeito liberador que a festa traz em contraposição
à fria racionalidade para inserir a noção que
será um dos cernes de seu texto, a saber, a de que a festa tem
um “sentido alimentador da vida onerosa que levamos”. Em outras
palavras, a festa se justificaria por ser justamente o momento em que
o homem pode “parar para respirar e, renovado, seguir adiante”
por se constituir no lugar de onde “saímos mais fortes para
enfrentar as exigências da vida”. A partir daí, Boff
insere o problema: o “espírito da festa” precede a festa
mesma, e é exatamente com esse “espírito”, formado principalmente de “jovialidade” e “alegria”, que não
estamos mais sabendo lidar. Haveria então uma alegria da festa
que estaria perdida, o que nos impediria de verdadeiramente festejar;
ao invés, tudo o que fazemos é frivolidade, tais como
exceder na comida e na bebida, falar palavrões grosseiros e
produzir festas montadas como comércio. A maior crítica
de Boff ao que ele chama de frivolidade é que, nas festas hoje
organizadas, “há tudo menos alegria e jovialidade” e, em
decorrência, “saímos delas vazios ou saturados quando
seu sentido era de encher-nos de um sentido maior para levar avante a
vida...”. Boff poderia parar por ai e não citar autor algum.
Sua bagagem como teólogo respeitado daria aval para isso. Mas,
não. Ele cita Nietzsche.
É
a partir de dois livros que o teólogo faz uso do filósofo:
Vontade de Potência (publicado postumamente) e Gaia
Ciência (1882).
Do
primeiro, o trecho citado é dividido em dois: “Para
alegrar-se de alguma coisa, precisa-se dizer a todas as coisas: sejam
bem-vindas” e “Se pudermos dizer sim a um único momento
então teremos dito sim não só a nós
mesmos mas à totalidade da existência” (todos, segundo
Boff, do Livro Quarto, “Disciplina e Seleção”). O
que Boff conclui das passagens é que “para podermos festejar
de verdade precisamos afirmar positivamente a totalidade das coisas”.
Porém o que Boff entende por “afirmar positivamente a
totalidade das coisas” está em consonância com o que
Nietzsche entende por afirmar positivamente a totalidade das coisas, de modo a justificar a citação?
Já volto a isso.
Do
segundo, Boff utiliza dois aforismos. Um, o aforismo 125, intitulado
“O insensato”, fala sobre o louco que, como Diógenes, o
cínico, pôs-se em praça pública, durante
o dia, com uma lanterna na mão, gritando “Procuro Deus!
Procuro Deus!” e, depois de ter conquistado o olhar de todos,
bradou “Vou lhes dizer! Nós o matamos, vós e
eu! Nós todos, nós somos seus assassinos!”. Outro, o
aforismo 343, nomeado “Nossa serenidade”, discorre sobre como há
esperança para os filósofos ou “espíritos
livres”, mesmo após a constatação de que Deus
está morto. Entretanto, a conclusão de Boff da leitura
de ambos, em forma de paráfrase é esta: “a perda da
jovialidade, isto é, da graça divina é a
consequência fundamental da morte de Deus”. Seria esta a
conclusão mais acertada dos aforismos?
A
resposta é negativa.
E para
justificar, retomo duas ideias: i) a pergunta que deixei em
aberto três parágrafos atrás, “O que é
“afirmar a totalidade das coisas”
para Nietzsche?” e ii) duas das quatro palavras-chave que
destaquei no segundo parágrafo: bondade e vida.
O que
Nietzsche entende por vida pode ser apreendido no célebre
parágrafo 259, de Além do Bem e do Mal (1886),
onde o filósofo expõe que viver “é
essencialmente apropriação, violação,
dominação do que é estrangeiro e mais fraco,
opressão, dureza, imposição da própria
forma, incorporação e, pelo menos, no mais clemente dos
casos, exploração”.
O que
Nietzsche entende por bondade é um valor que será
entendido a depender da perspectiva de quem o engendrou. No seu
pensamento, essa perspectiva é dupla: a dos senhores e a dos
escravos, a dos fortes e a dos fracos, a dos nobres e a dos
ressentidos. O senhor, a partir de si próprio, estabelece o
que é “bom” e,
apenas como “um contraste pálido”, atribui, no escravo, o
que é “ruim”. Sua
“bondade” está ligada tanto à sua destreza quanto à
sua força, superiores as do escravo que, por isso mesmo, não
executa bem suas ações; sendo, portanto, “ruim”.
Para o fraco, o forte é “mau”, e por “mau” ele entende
aquele que, apesar de ter forças e habilidades que excedem as
suas, poderia escolher não subjugá-lo e mesmo
assim não o faz. A partir do forte “mau”, ele elabora o
“bom”, aquele que, por “bondade”, escolhe não
subjugar, ou seja, ele mesmo.
O noção
de vida ajuda a entender a noção de “afirmar a
totalidade das coisas” para Nietzsche. Já que viver é
entendido como dominação, tudo o que vá de
encontro a isso é negador da vida. E a doutrina que mais de
encontro à vida nietzschiana se posiciona é a moral
cristã professada por Boff em seu artigo. O “excesso” que
Boff chamaria de “frívolo” é típico daquele
que genuinamente vive, o forte. O forte, aliás, jamais
partilharia da “bondade” cristã-boffeana entendida como
“capacidade de chorar, de se alegrar pela bondade da vida, pelo
nascer do sol e pela carícia entre dois namorados.” O bom
afirmador da vida e, portanto, da “totalidade das coisas”, não
seria o bonzinho esboçado por Boff.
Recuperando
as outras duas palavras-chave do parágrafo segundo acima, Boff
se esquece que a jovialidade e a festa afirmadoras de
vida a que Nietzsche se refere em nada se assemelham ao que ele,
teólogo, quer fazer crer em seu artigo. Bastaria que se
lembrasse isto: o que há de festivo na afirmação
da vida contraria em tudo a sua linha argumentativa, já que a festa se faz
também mediante o prazer desinteressado na crueldade:
Parece que repugna à delicadeza, mais ainda à tartufice dos mansos animais domésticos (isto é, os homens modernos, isto é, nós), imaginar com todo o vigor até que ponto a crueldade constituía o grande prazer festivo da humanidade antiga, como era um ingrediente de quase todas as suas alegrias; e com que ingenuidade se apresentava a sua exigência de crueldade, quão radicalmente a "maldade desinteressada [...] era vista como atributo normal do homem - logo, como algo a que a consciência diz Sim de coração!” (Genealogia da Moral, Segunda Dissertação, §6)
Seria
possível admitir que, na alegria, há crueldade? Boff
diria um Não de coração! E mais: é de difícil compreensão os motivos de Boff, tendo lido os parágrafos
que menciona de A Gaia Ciência, para ter omitido que um
deles, o 343, finda por concluir exatamente o oposto do que ele professa sobre a "morte de Deus". Ao contrário do teólogo, o filósofo encara como
auspicioso tal evento. Com a palavra, Nietzsche:
Talvez nos encontremos dominados pelas primeiras consequências desse evento? – e essas primeiras consequências, tendo em vista o que poderíamos esperar talvez, não nos pareçam sombrias e tristes, mas, contrariamente, como espécie de nova luz, difícil de descrever, como espécie de felicidade, alívio, de serenidade, de encorajamento, de aurora... [...] enfim o horizonte nos parece livre, admitindo mesmo que não esteja claro...
Enfim,
como disse acima, tivesse Boff encerrado seu sermão sem
referências bibliográficas ou se limitado à crítica à mercantilização das festas, teria acertado de mão
cheia - ainda que não dissesse nada de novo. Afinal, quem discordaria de que não sabemos mais
festejar e que ao invés de, como ele diz, nutrir-nos no
momento de celebração saímos ainda mais famintos? O problema todo está em usar um autor, forçando
tanto a interpretação que, ao final, qualquer outro
autor que se quisesse referenciar serviria.
Se qualquer um serviria, por que citar Nietzsche? Não encontro
outra explicação, penso mesmo que Leonardo Boff, ainda
que temporariamente, está sofrendo de uma séria doença.
2 comentários:
Dessa doença padecem muitos, inclusive os intelectuais cristãos quando tentam referenciar seus devaneios em citações descontextualizadas da sua própria bíblia.
Muito bom mesmo.
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