A.S. O texto a
seguir não aborda o caso sob um ponto de vista filosófico. Antes da filosofia poder se constituir, há outras questões
que merecem ser resolvidas. Lembrando de meus tempos de Jaqueira
(apelido carinhoso da Faculdade de Direito da UFAM), faço antes um
comentário estilístico e jurídico que filosófico, por entender
que o erro no raciocínio por mim analisado, antes de ser ético, é
de argumentação.
Fotograma do vídeo divulgado |
O que dizer de um discurso jurídico que peca tanto no encadeamento de um simples raciocínio, quanto na aplicação de um instituto jurídico? Se o que está na reportagem do Jornal da Cultura Online é fidedigno à sentença judicial, o argumento usado na decisão da juíza é tanto truncado, quanto antijurídico.
A magistrada
desconsidera o evidente dolo eventual, que se caracteriza quando,
mesmo sem intenção declarada, assume-se o risco de produção de
determinado resultado. No computo final, dolo eventual equivale a
dolo comum, ou seja, ambos querem dizer que houve intenção efetiva
de cometer o ato. Diferente do caso em que há culpa, quando não há
intenção alguma (havendo ou imperícia, ou negligência ou
imprudência).
Segundo a reportagem,
são palavras da juíza:
"Assim sendo, por
mais fortes, chocantes e, até mesmo revoltantes que sejam as imagens
da senhora Cláudia Ferreira da Silva, já baleada, sendo arrastada
no asfalto presa ao reboque da viatura, dos termos dos autos do APF
[auto de prisão em flagrante] não é possível inferir que os
policiais militares presentes na viatura conheciam tal circunstância
e a ignoraram. Ao contrário, o que mostram as imagens é que a
viatura parou e dois policiais desceram para a colocarem de volta no
interior da viatura"
Como não é possível
inferir que eles conheciam a circunstância e a ignoraram?
Se alguém - seja uma
autoridade pública, seja um cidadão comum - transporta uma pessoa
baleada até o hospital, é mais que razoável inferir que isso seja
feito com o máximo de diligência possível. E enfatizo o possível, porque não quero dizer ideal, abstrato, mas à luz das circunstâncias. Agora, prestar atenção, no sentido mais simples de manter os olhos na pessoa transportada durante o caminho até o hospital é o mínimo - repito em caixa alta, MÍNIMO - de diligência que se espera. Por isso que os policiais, se não
tinham intenção declarada, assumiram todos os riscos de acontecer o
que aconteceu. A magistrada, quando nos quer fazer acreditar o
contrário, parece agir por motivos não muito claros.
A reportagem também
menciona que "os PMs decidiram transportar a mulher no
porta-malas por terem sido hostilizados por moradores da comunidade".
Não importa. Como já mencionado, espera-se somente o mínimo de
diligência: por os olhos na pessoa transportada durante o
caminho até o hospital. Esse mínimo, mesmo em vista a hostilização,
não poderia ter sido descartado.
Além disso, há um
raciocínio truncado difícil de aceitar. Repito o trecho do discurso
da magistrada:
"não é possível
inferir que os policiais militares presentes na viatura conheciam tal
circunstância e a ignoraram. Ao contrário, o que mostram as imagens
é que a viatura parou e dois policiais desceram para a colocarem de
volta no interior da viatura"
Segundo a juíza, não
é possível inferir que os policiais sabiam da circunstância; "ao
contrário" (?), eles desceram da viatura e colocaram a mulher
de volta. Ora, o que a juíza, no seu próprio discurso, mostra é
que eles sabiam, tanto é que saíram da viatura e puseram a mulher
de volta. Como assim "ao contrário"?
O discurso da
magistrada é tão deficiente que erra tanto juridicamente quanto
argumentativamente. Isso é estranho. Para não dizer outra palavra
mais dura ao discurso de uma magistrada legitimamente constituída.
Um comentário:
Apesar de você ser impetuoso e audaz (qualidades que admiro), neste caso não precisa de muita coragem para esclarecer e denunciar nosso Estado como deliberadamente equivocado. A sentença da juíza pode demonstrar também imperícia, o que me recuso a acreditar, podendo também haver um ranço de preconceito racial e/ou social. E isso não pode.
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