Aquiles (pintura em vaso grego) |
Fernando
Pessoa escreve, retomando um antigo dito romano, que “Navegar é
preciso; viver não é preciso”. O poeta clama para si
o espírito da frase, que é o seguinte: antes de
tudo – até mesmo da vida –, é necessário criar; tornar a vida grande, de toda a humanidade. É
como se o poeta quisesse se tornar imortal através de seus
próprios feitos, tal qual um herói épico. Este, entretanto, precisa de um aedo que cante em versos sua jornada para que, toda vez que a narrativa
melódica seja entoada, sejam revividos seus feitos, e com
eles sua memória. Porém, Pessoa faz crer que quer se
emancipar da figura do herói para alcançar a
imortalidade. Ele mesmo quer ser o herói. Os feitos não
são mais de Hércules, de Aquiles ou de Odisseu, mas
dele próprio: do aedo da alma que não é pequena.
Mas que
condições levam alguém a crer na ideia, a
princípio paradoxal, de que é preciso abandonar a vida
para alcançar a imortalidade?
A Ilíada
de Homero mostra que a glória (kléos) tem a ver
com fazer com que o seu nome, junto com seus feitos, nunca
pereçam, nunca sejam esquecidos. Eis a condição
do mortal: ainda que seja o mais excelente dentre aqueles que o
pareiam, nunca será igual aos deuses, isto é,
imperecível. A condição do mortal é
exatamente esta: ele perece, tal qual uma flor que perde o viço.
O mortal ainda tem uma desvantagem, se comparado à flor: esta
pode ser plantada novamente e voltar a vicejar em outra estação,
seguindo um ciclo infindo. O mortal, uma vez tendo sua
passagem ao Hades realizada, não pode voltar: seu fim foi
decretado. Uma exceção apenas resta: ser acolhido pelas
Musas.
Zeus tem nove filhas com Mnemósine (Memória). Cada uma domina uma ciência e preside um tipo de arte. Elas são chamadas de
Musas, e o aedo, quando quer recitar algum poema, a primeira coisa
que faz é evocar-lhes o auxílio. Filhas da memória
que são, sopram no ouvido do poeta tudo aquilo que presenciam. Mas para que algo lhes seja digno da presença
há de ser grandioso. E ai começa a busca dos
mortais excelentes em encontrar ocasião onde seus próprios
feitos possam ser testados e, uma vez passados pelo crivo das
deusas, jamais esquecidos. É isso que leva o preferido
entre os deuses, Aquiles, até a Guerra de Tróia, mesmo
que os troianos jamais tivessem ofendido a ele ou a sua terra em
específico. Aquiles só é Aquiles por que é o
herói que tem seus feitos grandiosos testados e aprovados
pelas Musas.
E assim nasce a base para a poesia homérica: um aedo (Homero),
com o auxílio das Musas, canta os feitos de um herói
(Aquiles). Assim nasce um específico gênero,
o épico, que se traduz em um extenso poema de amplo alcance, composto em um
estilo de linguagem elevada, não usual e soberba, sobre os feitos
maravilhosos dos heróis.
Agora, há
mais elementos para entender o aparente paradoxo apontado acima: o da
morte que leva à imortalidade. Não se trata de qualquer
morte. Nem todos tem a sorte de morrer como um herói trágico: a maioria morre de forma banal e é esquecida no ato. A morte de Fernando Pessoa e de Aquiles, ao contrário, se dá para que seus nomes sejam lembrados. Vale dizer, cantados através dos tempos. Talvez se entenda melhor o poera através de uma paráfrase: ser imortal é preciso, viver não é preciso.
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