Uma dificuldade não
fácil de resolver surge quando um filme se propõe mostrar o
conflito interno de um personagem. Uma das críticas ao Hannah Arendt (Margareth von Trotta, 2012) foi exatamente o pecado
cometido ao se tentar retratar uma filósofa ou, como o imaginário
popular prefere, “alguém que pensa”, em seus momentos de
“reflexão”. Trotta não foi feliz – ao menos neste aspecto –
porque reproduziu o lugar comum do “pensador”, em cenas em que se
olha para o nada, fuma-se, põe-se a mão no queixo e blá blá blá.
Felizmente o erro de querer mostrar o tal do “conflito interno”
não acomete A menina do guarda-chuva (veja o trailer aqui).
Inversamente à
Segunda Balada (2012), também de Rafael Ramos, o conflito
interno é o que menos importa – e isso é um dos maiores acertos
da direção e do roteiro. Explico o que quero dizer por “conflito
interno”, comparando as duas produções. Na Segunda Balada,
para demonstrar que sofriam os personagens de Efrain Mourão e Diego
Bauer, evidenciavam-se-lhes os contorcionismos dos músculos faciais.
Na Menina, para demonstrar o mesmo, não bastou mais que
oferecer o personagem de Danilo Reis... vivendo! Não precisou de
nenhum close demorado em seu rosto para percebermos sua dor.
Sua mudança de humor é retratada exteriormente não em seu corpo
mais em outros elementos. E aqui entra um dos aspectos mais belos do
filme: o colorido.
Tanto o guarda-chuva
(e a menina que o segura) quanto os palhaços (no significativo
número de três) fornecem o colorido demiúrgico necessário para
superar o conflito do filme: a tristeza. Na película, alegria e
tristeza, aliás, não são mais sentimentos – aquilo que nós,
modernos, gostamos de depositar no caixa-forte escondido do Eu (se é
que vocês me perdoam o cacofônico trocadilho) –, mas sim
demiurgos, divindades cuja circulação e influência independem de
qualquer vontade que não sejam as suas próprias. Para entender o
que quero dizer quando contraponho sentimentos, de um lado, e
demiurgos, de outro, é só lembrar que Amor (Eros), Medo (Fobos) e
Sorte (Parcas), por exemplo, no Mundo Antigo, são todos escritos
assim, com letra maiúscula, porque ao invés de pertencerem ao
âmbito interno, são externos. Em um mundo não moderno, faz mais
sentido dizer “O Medo (divindade) me possui” que “Eu estou com
medo (sentimento)”. Desde que a subjetividade – essa invenção
filosófica da modernidade – não se torne discurso hegemônico,
ganham mais evidência as peripécias das divindades, como bem
retrata o Orestes de Eurípedes.
Nessa tragédia grega,
Orestes sofre de arrependimento não porque tem peso na consciência
(palavra cujo correspondente exato inexiste em grego antigo), mas
porque as Erínias (divindades da justiça enquanto vingança) não o
deixam de acompanhar, levando-o a picos de insanidade – imagem bem
retratada na pintura de Bouguereau. Meninas traz outras três
divindades (na verdade seis, se se conta a menina do guarda-chuva e o
assassino do pai), na figura de clowns, mas desta vez
divindades da alegria e não da vendeta. A estória se encerra
indicando, via presença do trio demiúrgico, que o conflito enfim
começa a ser resolvido ou que, em outras palavras, finalmente os
deuses voltam a favorecer o menino órfão.
Esse acerto da direção
e do roteiro não é obscurecido por outras falhas menores, por
exemplo, a do artificialismo dos diálogos. Como solução, talvez
valesse mais a pena deixar os atores – são todos de teatro –
estabelecerem jogos de cena por eles mesmos. Faria com que os
diálogos parecessem mais consistentes, não meramente decorados.
Para ficar em um único exemplo, que não compromete em nada a
qualidade do ator, até Robson Ney, artista de alguma estrada, é
artificial, quando representa o minúsculo personagem do balconista
da loja de fotos – e isso, penso, menos por responsabilidade sua
que pela direção.
No mais, é gostoso –
essa é a palavra, porque meche mesmo com o paladar – de ver a arte
de Hamyle Nobre e o comportamento de câmera e a fotografia de César
Nogueira – a qualidade dessa combinação da Artrupe já virou
marca. Outro bom acerto é a trilha sonora de Ediel Castro e o som
direto cantado de Diego Bauer e Heitor Lopes, tudo a ver com as cenas
nas quais se insere – caso fossem cortadas, virariam sem problemas
videoclipes de qualidade, tão em sintonia estão as narrativas da
canção e das ações. Enfim, é todo um clima onírico que essa
amálgama fornece. É isso que me leva a afirmar que essa Menina
é, sem dúvida, demiúrgica.
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