Quem lê
os diálogos em que aparece Sócrates, sabe que ele é
irônico e que nem sempre tem “bom trato” em relação
aos seus interlocutores. No “Crátilo” de Platão, há
um bom exemplo dessa sua postura. Ao final, Sócrates não
conseguindo, por todos os argumentos, convencer seu interlocutor,
simplesmente se despede, dizendo-lhe: “...já que estas
disposto, caminhe para o campo e leve consigo também
Hermógenes, que cá está”.
Nada
demais, não é? Bom, não haveria se a)
Hermógenes não fosse um nome derivado do nome Hermes
(portanto ele mesmo, podendo ser um representante da divindade), se
b) o próprio deus Hermes não fosse o responsável
por conduzir as almas ao Hades e se c) o verbo em grego
equivalente à tradução “caminhe para o campo”
também não fosse o mesmo usado para as ocasiões
em que as almas descem ao Hades. Em outras palavras, o que sutilmente
Sócrates está dizendo é isto: vá para o
inferno, Crátilo!
No meio
intelectual, não há problema algum na arrogância,
considerada em si. É possível justificá-la em
vários casos. Igualmente, não há problema na
grosseria, também se pode justificá-la, não
sempre, mas em determinadas situações certamente.
Também não há problemas em proferir palavrões
– o mesmo argumento. O problema que há é o de fazer
uso de todos esses expedientes sem propriedade alguma. Mas o que
fornece tal propriedade?
A
primeira coisa a ser dita é que não há um
princípio geral que regule o “bom uso” da arrogância,
da grosseria e dos palavrões. Há quem defenda que nunca
se pode falar em bom uso, quando se trata de tais usos – a acusação
que recai sobre quem os utiliza é, predominantemente, a de
alguém que está apelando ao argumento ad hominem
(aquele que se dirige ao
indivíduo, não ao seu argumento). Discordo,
quase sempre, de que a utilização do ad hominem
desqualifique o argumento de quem o utiliza. Quase sempre. De fato,
existem casos em que os argumentos simplesmente não convencem
o interlocutor que insiste em empacar. O diálogo “Crátilo”
nos mostra isso.
Mas se
não há princípio geral que regule o bom uso do
ad hominem e se, ao mesmo tempo, ele requer alguma propriedade
ao ser utilizado, como distinguir o seu “bom uso”? Se não
há critério positivo, há algum critério
negativo? Sim, há: podemos dizer que todos concordam que um
arrogante, grosseiro e boca suja que sabe do que está falando
é menos pior que um arrogante, grosseiro e boca suja que não
tem a menor ideia do que está
falando. Trocando em miúdos, é mais fácil levar
a sério alguém que esbraveja com conhecimento do que
alguém que esbraveja falando impropriedades. O critério
negativo, portanto, é o de que o arrogante, grosseiro e boca
suja não seja – e que isto se ponha com todas as
letras – burro.
O burro
é o animal que empaca num lugar, não importando as
tentativas de movê-lo dali. O burro intelectual é o ser
humano que empaca num raciocínio não importando quantos
outros mais razoáveis venham a contra-argumentá-lo.
Essa espécie de burro é encontrada fora e dentro da
educação formal. Do mesmo modo que não é
preciso ser pobre e ignorante para ser burro, também não
é preciso estar fora da Universidade para sê-lo. Porém,
penso que o problema é maior quando, aliada a essa postura,
vem uma outra: a do autodidatismo.
O
problema é que figuras que nunca frequentaram a educação
formal (seja por falta de mérito ou por alinhamento
ideológico) passem a substituí-la. Não raro,
finda-se por acontecer o contrário do que o mais bem
intencionado autodidata professa: o alinhamento ao dogma, a
instauração da visão única, o
empacamento, a burrice. O que era para ser uma auto-educação
que visasse o não dogmatismo vira uma educação
dogmática em que se idolatra alguém que, não
tendo frequentado a academia, consegue parcamente ler livros
acadêmicos.
Ademais,
o autodidatismo do modo como se nos apresenta parece pressupor uma
característica extremamente danosa: exclui o diálogo
com os pares. Sob a justificativa de que tudo que é da
educação formal é “contaminado”, o
autodidata é aquele que pensa que pode saber sem frequentar o
círculo dos amigos do saber, sem por seus argumentos à
prova; é aquele que, por se inserir num grupo em que todos
pensam como ele e dizem exatamente o que ele quer ouvir, sente-se um
sábio. No exemplo mais caricato, o autodidata é tanto
aquele que interpreta a Bíblia voluntariosamente quanto aquele
que se recusa a ler Marx sob o pretexto de que se trata de um
doutrinador de esquerda. O autodidata, em resumo, é aquele
que chega ao cúmulo de não saber mais distinguir o que
é um clássico – seja ele um autor ou uma
interpretação.
Há
inúmeros autodidatas que se aproveitam da ignorância de
incautos e de mal intencionados. Isso se dá em grande parte
devido ao nosso Ensino Médio de má qualidade (sim, a
Universidade tem seus problemas que são excessivos, mas quem é
a favor do autodidatismo dificilmente é do tipo que consegue
ser aprovado em ENEM ou em exames vestibulares).
Porém,
mesmo diante dessa educação média capenga, penso
que nós da Universidade temos um dever de combater esse
autodidatismo que, a princípio, parece ser ótima ideia
(liberdade intelectual, autonomia argumentativa, não adoção
de dogmas etc.), mas que finda por gerar esse tipo de aberração.
Isso só prejudica ainda mais a educação de nosso
País e muda o foco do que é realmente importante:
valorização do salário do professor, melhoria
das condições de infra-estrutura das escolas, internet
de qualidade etc.
A
educação de qualidade, formal ou informal, não
se dá com o prefixo -auto, o prefixo -co é o correto.
É hora de deixarmos de lado as reservas que nos obrigam a ser
polidos e começarmos a não temer, quando necessário,
agir como Sócrates diante de Crátilo. Todos sabemos que
o que é tão proclamadamente próprio (-auto) só
esconde ou uma incapacidade intelectual ou um aliamento ideológico
burro. O autodidatismo, nesses moldes, não passa de uma falsa
libertação intelectual.
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O
leitor pode conferir tanto o original grego quanto a versão
completa em Língua Portuguesa de onde o trecho foi tirado da
seguinte obra: SOUZA, Luciano Ferreira de. Platão,
Crátilo, estudo e tradução.
São Paulo, Dissertação de Mestrado, USP: 2010.
Disponível aqui.
Acesso em 10/10/2013.
Esta
interpretação anedotária é minha; não
há concordância entre estudiosos quanto a ela. Porém,
outras passagens em que Sócrates ilustra postura equivalente
podem ser encontras – e, agora sim, com defesa de alguns
estudiosos – , e.g., em “Górgias”. Devo essa
interpretação a um insight que tive ao assistir
à palestra da Prof. Luisa Severo Buarque de Holanda, na
UFRRJ, no começo deste ano, quando apresentou uma comunicação
sobre sua tese de doutorado pela PUC-RJ, “As armas cômicas:
os interlocutores de Platão no Crátilo”.
Um comentário:
Conhecimento é ciência, que se traduz em averiguação e pesquisa - nunca simples "constatação". Vale, para a ciência, colocar à prova o que se sabe ou descobriu - isso é produzir conhecimento. É o que você está fazendo cada vez mais brilhantemente. Parabéns!
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