Em
1996, a Revista LIFE trouxe na sua capa o título “Um Corpo, Duas
Almas”, reportagem sobre as gêmeas siamesas Abigail e Brittany
Hensel. As garotas são gêmeas coligadas cujas cabeças
aparentemente partilham o mesmo tronco, braços, pernas etc, dando a
aparência de um mesmo corpo sustentando duas cabeças. As irmãs
ganharam certa notoriedade. Há alguns anos, deram entrevista a uma
rede de TV norte americana, The Learning Channel [1] e,
atualmente exibem seu próprio reality
show, Abby and Brittany [2], mostrando que levam uma
vida normal a despeito do que se poderia julgar à primeira vista.
De
fato, numa análise mais cuidadosa, comprova-se que internamente há
órgãos duplicados (esôfago, pulmões, estômago etc.), o que
derruba a tese do senso comum de que se trata de um só corpo
sustentando duas mentes. Mesmo assim, é interessante fazer uso dessa
imagem popular que associa o que é do pescoço para baixo ao “corpo”
e o que é do pescoço para cima à “mente”, porque entre outras
coisas remete à separação mente/corpo discutida na Filosofia.
Utilizando-se dessa mesma imagem, pode-se levantar outras questões
através do curta-metragem de animação Twins (2011),
dirigido pelo eslovaco Peter Budinsky [3].
Premiado
por sua criatividade e expressão artística no Festival
Internacional de filmes animados BANJALUKANIMA
2011, o curta chamou atenção por ser visto como tratando da
temática do alter ego, expressada pela metáfora de “dois
corpos e uma alma tratados de uma maneira humorística, focando no
problema da intolerância e do egoísmo utilizando da estética do
absurdo” [4]. Apesar do juri ter relacionado a história à
temática, o filme pode ser visto como abordando outras questões.
O alter
ego é um outro eu, que faz parte do eu normal, porém
geralmente não é percebido por ele. Retrata bem essa faceta
escondida, secreta do outro eu a película Clube da Luta
(2000), dirigida por
David Fincher. Ali o personagem principal, até o final do filme, não
se dá conta que toda a ação dramática realizada em conjunto com
seu amigo, no final das contas, era empreendida por ele só. Dessa
maneira se estabelece o escondido que age mesmo que não seja
percebido. Porém, em Twins, a história se dá de maneira
diferente.
Tal
qual Abby e Brittany, os personagens principais são dois gêmeos
coligados, só que pela cabeça: um deles, um cara grande e durão; o
outro, um nanico pusilânime. Como as irmãs, os dois levam uma vida
normal: lutam boxe, fazem sexo, pegam táxi, enfim são reconhecidos
pela sociedade como tal. Ainda em comparação com as gêmeas, não
há nada de anormal, de escondido ali. Sendo assim, considerar a
fábula de Budinsky algo sobre o alter ego, penso, é vê-la
não através do melhor prisma. O que o diretor traz não é a
história usual da personalidade que não se revela, que foge ao
controle do indivíduo. Trata-se de outra coisa.
O filme
começa com uma luta de boxe – é assim que eles ganham a vida. Os
irmãos se enfrentam. O grandão sempre massacra o pequeno. Ao ganhar
o duelo, o brutamontes recebe toda a glória e trata seu gêmeo com
desprezo – os prêmios são todos dele: troféus, fama, mulheres.
Uma cena engraçada no meio disso é a do sexo. Enquanto uma mulher
cavalga no grandão, o menor está envergado e morrendo de tesão.
Numa tentativa de partilhar da glória do irmão ele arrasta o troféu
da luta que acabaram de realizar para perto de si, dando a entender
que a vitória do irmão, não fosse por ele, não existiria. Ao ver
a caneca perto do nanico, como que só guiada pelo brilho do ouro, a
mulher salta da vara maior ao graveto enrijecido do menor. O
grandalhão, enraivecido, tasca um soco no irmão e arrasta o troféu
novamente para o seu lado, o que faz com que a mulher salte de volta
num ritmo intermitente.
A cena
de sexo leva à cena da morte do menor. Em mais um duelo entre eles,
o menor, ao associar a glória da luta à possibilidade de transar,
resolve reagir. O irmão, cego de raiva pela ousadia, extrapola na
força e acaba por levar o outro à morte. Na tumba, o pequenino não
é separado do grandão. Este permanece deitado sobre o chão de
terra batida, em baixo do qual jaz seu irmão. Chuva cai. Panorâmica
das tumbas do cemitério. Fim.
Fim do
filme, mas, por pelo menos três parágrafos, não do texto.
Pelo
que a película mostra da convivência dos dois, não se trata da
história de um ego e de um alter ego. São dois
indivíduos, distintos. Diferente de Abby e Brittany, eles não
podem ser vistos pelo senso comum como possuindo só “um corpo”,
muito menos só “uma mente”. A delimitação de cada um é bem
clara como o são suas atitudes muito bem figuradas em suas estaturas
somáticas. Juntos, ainda que em detrimento de um deles, conseguem
certo status e reconhecimento. E isso só se dá em decorrência da
união, posto que poderiam estar separados – nenhum órgão vital
os conecta, o traço do desenho deixa isso claro.
Nesse
passo, essa característica os assemelha mais ao mito do andrógino,
narrado n' O Banquete de Platão. Este ser mitológico,
composto por dois seres unidos, era dotado de tamanha força que
chegou a desafiar os deuses. Separado do seu igual, não surpreendia
muito. Ainda que os irmãos de Budinsky não sejam tão poderosos,
suas trajetórias só fazem sentido unidas. Isolado de seu gêmeo, o
grandão não é tão poderoso assim. E, tal qual o andrógino
apartado de seu par, uma vez só, não há outra alternativa a não
ser viver à procura de sua outra parte. Na morte desta, não resta
outra solução a não ser deitar-se no solo fúnebre e esperar a
morte.
Assim,
ao invés de falar sobre alter ego, intolerância e egoísmo
como mencionado pelo juri do Festival, Twins parece muito mais
tratar da temática da valorização do companheirismo e da amizade.
Sem querer descambar para a autoajuda de má qualidade, Peter
Budinsky fornece uma boa alegoria de como não se deve menosprezar o
companheiro, entendido como aquele que participa de nossas ocupações,
atividades, aventuras ou mesmo de nosso destino. Ainda que Twins
não suscite questões metafísicas como a separação mente/corpo a
qual a história de Abby e Brittany pode remeter, a fábula lembra
que mesmo que o outro não possua o mesmo status que o nosso, sua
ausência pode ser fatal.
REFERÊNCIAS
[1]
Entrevista em inglês das gêmeas ao The Learning Channel em
dezembro de 2006. Endereço do vídeo no Youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=BkKWApOAG2g.
[2]
Site oficial do reality: http://www.tlc.com/tv-shows/abby-and-brittany
[3]
Site oficial do diretor, onde é possível visualizar o filme:
http://www.peterbudinsky.com/
[4]
Site do Festival:
http://banjalukanima.org/2011/en/index.php?str=btg_vijesti7
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