Imaginemos a
seguinte situação em sala de aula. Um professor está
explicando o sistema filosófico de um autor clássico.
Pode ser qualquer um – de Platão a Heidegger. Ele passa
pelas etapas de qualquer manual, como era de se esperar, para
elucidar o pensamento em questão. O tempo passa e lá
pelas tantas resolve ser “crítico” e emitir sua opinião.
E eis que passam a surgir palavras que enquadram o filósofo,
simplificam-no por assim dizer. “Platão é comunista
ao defender sua República”, “Hegel é um idiota por
tentar abarcar a totalidade do real”, “Heidegger não
passou de um nazista nojento”. Os estudantes mais envolvidos
sorriem; os mais eufóricos gargalham. Uns concordam. Outros
acham que o professor está apenas contando uma piada e
demonstrando certo espírito ao fazê-lo. Porém,
aos poucos, estes últimos vão se surpreendendo ao se
dar conta de que não é piada coisa alguma. O professor
realmente entende os filósofos através de vocabulários
avaros, como se fosse uma apostila.
Dentro de uma
representação simplificada, entretanto, qualquer
filósofo vira qualquer coisa. Platão com efeito se
torna comunista; Hegel, realmente maluco e Heidegger, sem dúvidas,
um nazista nojento cuja filosofia não apresenta valor algum.
Mas, um sistema filosófico ou um filósofo podem ser
entendidos a partir de termos tão minguados, mesmo quando
estamos diante, por exemplo, de uma tese por eles sustentada
aparentemente indefensável?
Analisemos um caso
de uma tese que é tomada como indefensável para nós,
ocidentais modernos que vivemos em democracias liberais: a defesa da escravidão. A defesa que fornece Aristóteles da
escravidão, é possível explicá-la? Seria
Aristóteles um mero ideólogo da escravidão?
Modernos que somos,
tendemos a ler o famoso dito aristotélico de que o homem é
um zoon
politikon
como um simples o
homem é um animal social.
O surgimento da esfera social, entretanto, é um fenômeno
historicamente recente, moderno, que nasce politicamente junto com o
estado nacional. Antes de nos identificarmos como seres sociais,
identificávamos a nós mesmos como pertencentes ou à
esfera política ou à esfera privada, pelo menos desde o
surgimento da antiga cidade-estado. O equívoco que nos leva a
interpretar Aristóteles de forma errônea é
decorrente de equacionar, sem mais, a esfera política com a
social. O social se não é privado, tampouco é
político no sentido restrito do termo.
Antes
de lidar com a categoria do social, é preciso saber
diferenciar o que é político do que é privado
para entender como Aristóteles encarava a escravidão. E
isso pode ser resumido em compreender que há uma diferença
significativa entre a esfera da polis
e a esfera da família, em outras palavras, entre as atividades
comuns da cidade-estado e aquelas pertinentes à manutenção
mais básica da vida. É Hannah Arendt, em A
condição humana,
quem lembra que nessa divisão, vista como axiomática e
evidente por si mesma, baseava-se todo o antigo pensamento político.
A esfera familiar é
regida pela necessidade. Os homens são impelidos a ela para
satisfazer carências básicas, inspirados pela natureza e
não por intermédio de uma ideia preconcebida.
Aristóteles, no Livro I, da Política, toma como
dadas ao menos duas relações basilares, a de reprodução
e a de ordem/obediência. A justificativa para a
primeira: “Deve-se, antes de tudo, unir dois a dois os seres que,
como o homem e a mulher, não podem existir sem o outro [...].”
A justificativa para a segunda: “Porque aquele que possui
inteligência capaz de previsão tem naturalmente
autoridade e poder de chefe; o que possui força física
para executar, deve, forçosamente, obedecer e servir – e,
pois, o interesse do senhor é o mesmo que o do escravo.” Em
Aristóteles, essa dupla união (homem/mulher,
senhor/escravo) constitui a família. O fato de que houvesse
papeis definidos para a mulher, para o escravo e para o chefe de
família era tomado como óbvio, porque todos eles
estavam sujeitos à uma só coisa: a permanência da
vida. Assim, o lar se constituía em uma comunidade natural
(não deliberada) que decorria da necessidade. É a
necessidade que reinava sobre o que se passava no lar.
Em
contrapartida, a esfera da polis é a esfera da liberdade. A relação entre as duas
esferas era a de que, para usufruir da liberdade na polis,
era preciso vencer as necessidades da vida em família. Hannah
Arendt lembra que
“O que todos os filósofos gregos tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade – por exemplo, subjugando escravos – e alcançar a liberdade.” (grifo meu)
A
polis
é diferente da família na medida em que só
acolhe iguais,
ao passo que a família forçosamente só agrega
desiguais.
Estar sujeito à necessidade significa estar sujeito ou ao
comando de outrem ou a ser obrigado a comandá-lo – nem uma
das duas opções sendo passível de deliberação.
Ser livre significa não estar sujeito a necessidades, portanto
não estar sujeito ao comando, tampouco a comandar. Onde há
domínio e submissão não há liberdade.
Nessa perspectiva, na esfera familiar, mesmo para o chefe da família,
a liberdade só existia na medida em que ele tinha a faculdade
de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde
encontraria seus pares.
É
verdadeiro afirmar que a igualdade política antiga em quase
nada se assemelha ao conceito atual de igualdade, porque ela não
só significava viver entre iguais
– e somente com eles – como também pressupunha a
existência de desiguais.
Além disso, os desiguais se constituíam sempre na
maioria da população da cidade-estado. A igualdade,
então, ao contrário de hoje, não era uma questão
de justiça social, mas sim uma questão essencial para
que houvesse liberdade.
Essa
liberdade, entretanto, não vinha sem um preço: a
violência. Uma vez que todos os seres humanos são
sujeitos à necessidade, eles tem o direito de empregá-la
contra os outros. É como põe Hannah Arendt: “a
violência é o ato pré-político de
libertar-se da necessidade da vida para conquistar a liberdade no
mundo.”
Todo o conceito de domínio e de submissão, de governo e
de poder no sentido em que o concebemos, bem como a ordem
regulamentada que os acompanha, eram tidos como pré-políticos,
pertencentes à esfera privada, e não à esfera
política.
Entender
a condição do escravo a partir da diferença
basilar entre as esferas do privado e do político parece ser
mais proveitoso que simplesmente considerar Aristóteles um
mero defensor do status
quo
escravocrata da Grécia Antiga. Até mesmo sua opinião
– partilhada por todos os gregos e aparentemente infundada – de
que os bárbaros eram afeminados e que não conheciam a
auto-regulação deve ser lida levando-se em consideração
aquela distinção. Uma vez que a polis
é um fenômeno grego, o campo estritamente político
só a eles pertencia, portanto tudo o que não fosse
grego, isto é, tudo o que fosse bárbaro não
conhecia a liberdade e, logo, estaria sujeito à necessidade –
e daqui para a escravidão natural, não é difícil
chegar.
Aristóteles,
então, não se constitui como mero corroborador de uma
ideologia escravocrata. Não há uma busca de
universalidade a qualquer preço em seu argumento. Tampouco há
nele a tentativa de estabelecer a verdadeira natureza grega que
estaria destinada a comandar a natureza bárbara – o comando
tem pouco a ver com a liberdade grega. Aristóteles não
está meramente querendo justificar o status
quo,
ele apenas parte do que está estabelecido para, então,
fornecer uma narrativa que explique tal estado de coisas. E é
nisso que a filosofia se distingue da ideologia. Esta vem à
frente, não tem pudor algum de se mostrar enquanto doutrina
estanque que fornece explicações redentoras para a
totalidade das coisas; aquela vem posteriormente e fornece uma
explicação racional para compreender e dar sentido ao
que já está posto – tal qual a coruja de Minerva que
só levanta voo ao entardecer, na metáfora de Hegel.
Por
fim, tentar abarcar um filósofo – ainda mais um filósofo
clássico como é o caso de Aristóteles –, como
o faz o professor caricatura do primeiro parágrafo, em termos
parcos como escravocrata, socialista, capitalista, machista,
pessimista, louco, idiota parece mais um comportamento pueril de quem
é mais afeito a tolas simplificações que quem
realmente está comprometido em entender uma doutrina ou uma
prática filosófica. Saber fugir das explicações
de tal caricatura é uma questão de sobrevivência
para o aluno inteligente. A sorte é que para cada deformação
pedagógica desse tipo há um daimon
filosófico como Hannah Arendt. É só procurar.
Um comentário:
É o simplismo das considerações apressadas. É a falta de tradição e, sobretudo, a ausência de uma consciência histórica. Talvez a ânsia do interpretar, desvendar, redescrever etc. seja o pecado maior. Usar a inteligência com mais parcimônia, prudência e calma parece uma boa prática. Os discentes agradecem.
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