Viviany Beleboni, a atriz que realizou uma performance em que aparecia crucificada, na última parada gay, participou ontem do Hora da
Coruja, programa de filosofia na FlixTV, conduzido pelos amigos
Francielle Chies e Paulo Ghiraldelli Jr., ocasião em que lhe fiz uma
pergunta. Perguntei-lhe sobre o que ela achava do caráter político
da parada gay, do modo como se manifestavam politicamente a
comunidade LGBT.
O que motivou minha pergunta foi o fato de, mais cedo, ali mesmo, e em outras entrevistas, Viviany ter alegado que não concordava com o modo com que estão, principalmente alguns políticos difamadores, vinculando sua imagem à de outros manifestantes mais exaltados.
O que motivou minha pergunta foi o fato de, mais cedo, ali mesmo, e em outras entrevistas, Viviany ter alegado que não concordava com o modo com que estão, principalmente alguns políticos difamadores, vinculando sua imagem à de outros manifestantes mais exaltados.
Sabe-se que o pastor deputado Marcos Feliciano divulgou uma
montagem em que aparecem as imagens de Viviany crucificada em um
quadro, junto a outros quadros em que aparecem outros manifestantes
executando performances mais agressivas, uma delas é a de enfiar um
objeto no cu, outra é a de fumar maconha. Sabe-se também que já
foi desmentido que os quadrantes retratando os heterogêneos
manifestantes não são todos da parada gay. (O leitor pode ver a
reportagem em que ocorre o desmonte da farsa aqui). Porém, por que
incomoda Viviany o fato de vincular sua imagem a outras
manifestações?
Quando participei dos protestos de junho de 2013, na Av. Rio
Branco, no Rio de Janeiro, um manifestante (outros havia, mas com
este eu cheguei a ter uma conversa direta) tomou para si o dever
político de, no meio dos outros que só se preocupavam em levantar
cartazes de mais variados vieses, inclusive humorísticos – o que
era o meu caso, você pode ver uma foto minha da época aqui –, de
conscientizar, fazer com que aquilo não virasse uma micareta, uma
festa a céu aberto. Na ocasião o considerei sisudo demais, porque o
fato de ele estar ali monitorando a alegria alheia me pareceu excesso
de politização. Por excesso politização, aqui, entendo os
ativistas que só enxergam um lado da luta, como não poderia ser
diferente, e que além disso querem eliminar o outro lado, não
conviver harmoniosamente com ele. Continuei meu protesto
bem-humorado, junto com dois outros amigos, a Patrícia e o Thiago, e
esqueci do carrancudo.
De todas as minorias, sempre encontrei mais sentido no tipo de
protesto dos gays que dos negros e das mulheres, por exemplo. Os gays
foram os únicos que, nessa luta, conseguiram transformar grande
parte dos adjetivos pejorativos que lhes impunham em adjetivos não
pejorativos. E o fizeram com humor! “Viado”, “bixa” e “bofe”
viraram, na boca de pessoas bem-humoradas, adjetivos carinhosos,
familiarmente admoestadores e lisonjeantes, respectivamente (no Rio
de Janeiro, viado virou sinônimo de “brother”, “cara”,
“mano” – curiosamente, com a mesma função que exerce a
palavra “macho”, no Ceará). Os gays, nesse sentido, escapam
daquilo que após Nietzsche conhecemos como ressentimento, o
principal combustível de um específico tipo de moral, a moral do
fraco ou do escravo.
O ressentimento pode ser compreendido como um caldeirão de ódio
insatisfeito que é constantemente mexido por um cozinheiro que é
espezinhado, mas que não tem condições de revidar; sua única
alternativa é olhar para o caldeirão e enxergar ali, como uma bruxa
que vê o futuro, tudo o que ele faria com seu inimigo, caso tivesse
força para tal. Resultado disso é que o ressentido não esquece,
ele se recorda o tempo todo, porque sua atividade não é outra que
não a de mexer e remexer o caldeirão. O cozinheiro, caso
generalizado, é o modelo para um tipo de comportamento que, para
sobreviver – afinal, nem só de ódio vive o homem –, tem que de
alguma forma transformar esse ódio, mesmo que não deliberadamente.
O cozinheiro de Nietzsche é o cristão. O cristão, considerado
enquanto tipo e não como indivíduo, aproxima-se do cozinheiro
quando é espezinhado e não tem como revidar. Tendo sua base
histórica em Roma, para sobreviver sua moral não poderia ser outra
se não a de transformar o espezinhamento próprio, isto é,
transformar tudo aquilo que é falta, impotência e inaptidão em seu
oposto. No cristão, falta de sexo, vira pureza; fraqueza, bondade;
submissão a quem se odeia, obediência; não ser capaz de se vingar,
perdão. Porém, mesmo empreendendo essa transformação, outra
característica da moral do escravo é negar, dizer não –
justamente porque não pode dizer sim. O ressentido, isto é, o fraco
é aquele que não age, apenas reage. Agir, na conta de Nietzsche, é
a atividade de quem é potente, só pessoas aptas agem; inaptos,
esperam a ocasião certa, confabulam, tramam e só depois da ação é
que passam a (re)agir.
A reação, nesse sentido específico, foi algo de que os gays,
enquanto manifestantes políticos, conseguiram se manter afastados de
certa forma, diferente das mulheres e dos negros. O humor é a marca
principal que confirma essa tese. Na conta da narrativa nietzschiana,
só o forte é capaz do humor; o fraco é demasiado carrancudo, está
ocupado de mais corroendo o ódio interno para rir de si próprio. A
tipologia mais extrema do ativista negro é aquela que, até mesmo
quando ri de si própria, só permite o riso depois de um
monitoramento, para ver se a risada não machuca ninguém – como se
fosse possível controlar isso (fiz um texto respondendo a um
posicionamento assim de um ativista negro, e você pode lê-lo aqui).
O lado contraprodutivo do riso, porém, é a carnavalização ou,
para inventar um neologismo, uma coringalização – fazendo
referência ao Coringa do Batman, especialmente ao Coringa de Heath
Ledger, no filme Batman, cavaleiro das trevas (Christopher Nolan,
2008). O Coringa, nessa conta, é aquele que só quer rir de tudo e
instaurar o caos, a ausência de objetivos. A graça de tudo está em
que tudo que se pretende sério, porque persegue alguma causa, na
verdade, não tem causa nenhuma a seguir. É exatamente isso que
Viviany vê na parada gay atual, a coringalização, e com ela o
risco iminente de se realizar o que tanto quer o Coringa: a sensação
de que nenhuma causa deve ser seguida e que não vale mais a pena
lutar por algo. Foi isso que Viviany me respondeu. Seu objetivo, com
a performance, foi fazer com que o excesso de riso parasse de causar
a sensação de que não se deve mais lutar por alguma causa.
Não importa o quanto políticos e religiosos tenham se sentido
chocados com a performance de Viviany, ela não foi chocante. Não há
um sinal sequer, na performance inteira, de desrespeito por parte de
Viviany, a não ser que se considere chocante um travesti fazer o
papel de Cristo crucificado na parada gay, como se houvesse ocasião
mais pia que outra para fazer o papel de Cristo. Vou mais longe ainda
e digo (contrariando inclusive a intenção de Viviany) que a
performance não foi sequer uma “releitura contemporânea” da
crucificação, porque não houve representação, mas sim
presentação. Isto é que causou o tão alegado choque: Viviany
presentificou Cristo, que apareceu, para o ódio dos auto-alegados castos, na rua,
na parada gay, em vez de na Igreja ou no palanque da bancada
evangélica do Congresso Nacional.
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