“Se agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e
elegante discrição social […]”, diz Mário de Andrade em
recente carta publicada, “é porque se poderia tirar dele um
argumento para explicar minhas amizades platônicas, só minhas.”
Não é fácil interpretar esse trecho; chama a atenção, porém,
a expressão utilizada pelo escritor: “amizades platônicas”. Não
seria amor platônico o que o artista quis dizer?, perguntaria
alguém. Eu penso que não.
Consideramos saber o que significa amor platônico. Significa,
diríamos, um amor idealizado em que amamos um projeto de pessoa e
não a pessoa em todas as suas idiossincrasias. Significa também um
amor em que namoramos alguém, sem que necessariamente alguém nos
namore. É assim que quem não leu o Banquete, nem o Fedro entende
Platão. Nada de mais, todo grande pensador deixa de precisar ser
lido para ter seu nome ou sua doutrina (mal) entendidos. Mas Platão
pode querer dizer algo diferente do platonismo do senso comum.
No Banquete, o discurso de Sócrates é no sentido de pôr o amor
funcionando como uma dose de sublimação, isto é, algo que modifica
sua orientação originalmente sexual de maneira a ser conduzido a
outro estágio, de mais valor. O amor funcionaria
metodologicamente como uma espécie de escada em que, degrau a
degrau, vai-se amando corpos belos até que se esteja preparado para
contemplar o Belo, que é totalmente não corpóreo. Então, ainda
que com um objetivo, por assim dizer, mais elevado, o amor platônico
aqui não exclui o contato corporal e, consequentemente, sexual, nada idealizado com o amante.
No Fedro, ocorre o elogio do amor enquanto loucura, a loucura
daquele que, ao ver a beleza sobre a Terra, é capaz de esquecer de
tudo o mais e só ter olhos para ela. Essa loucura merece elogio
acima de tudo porque é enviada por um deus, Eros. E,
secundariamente, porque o desejo dos amantes, caso iniciados nos
mistérios do amor, empenha-se em fazer com que um invista na melhoria do outro. Novamente,
nada do entendimento comum do amor platônico enquanto algo que é
possível mesmo que um amante não saiba da existência do outro.
Mas o que toda essa conversa sobre amor tem a ver com Mario de
Andrade?
Toda a celeuma que envolveu a publicação da carta do autor
centrou-se em saber se a predileção homossexual ali revelada era ou não
relevante para explicar sua obra artística. Dividiu-se em
considerá-lo uma espécie de Oscar Wilde, em que se pode mais
facilmente vislumbrar uma relação entre opção sexual e obra, e
alguém cuja opção de quem amar em nada interferiria na condução do trabalho. Essa discussão é irrelevante para os propósitos aqui
levantados. Tudo o que pretendo é chamar atenção para o fato de
que a “amizade platônica” pode contribuir de modo significativo,
sem que para isso tenhamos que entendê-la do modo como entendemos a
homossexualidade moderna.
Até agora evitei propositalmente mencionar os termos que utiliza
Platão, porém não há mais como separar o amor platônico do que
ele chama de “amor filosófico por rapazes”. O amor filosófico
por rapazes é o
procedimento filosófico por excelência para Platão. Nesse caso, Eros trabalha
de modo a favorecer o melhoramento do amante e do amado, na condução
da pederastia, fazendo com que cada um se movimente no sentido de
mostrar a sua excelência ao outro. A filosofia intervém como
matéria conversacional, iniciando com o belo carnal, até o Belo
enquanto Forma, daí à Verdade e ao Bem. No processo, os amantes
dedicam homenagens concretas um ao outro, que podem se traduzir em
grandes obras culturais – o que evidencia o impulso criador do
amor. Esse caminho, em Platão, extrapola a vida, numa amizade de
almas indissolúvel – afinal, após a morte, permanecem suas obras
imortais.
Prevendo que encararíamos a grega “amizade platônica” de
forma banal como o moderno e romântico “amor platônico”, Mario
de Andrade deixou criptografado que, para ele, o amor por rapazes era
muito mais que homossexualidade ou questão de identidade de gênero.
Era, sim, ainda que carnal, algo que envolvia sublimação e impulso
criador, não um simples amor não correspondido por este ou aquele
amigo hétero. Talvez Mario de Andrade, em seu amor filosófico por
rapazes, tenha sido o nosso Sócrates, e nós só tenhamos nos dado
conta disso 50 anos após sua morte. Mas se tem uma coisa que Platão
nos ensinou é que nunca é tarde para reabilitar Sócrates.
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2 comentários:
Aqui talvez até se possa defender a tese de que a filosofia grega surgiu mediante impulsos criativos de amor carnal...
E amor carnal por rapazes. Necessariamente. Não nos esqueçamos.
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