Há
um termo, utilizado no vocabulário marinho, que designa a
escultura com feições humanas ou animalescas,
geralmente em forma de busto, embora possa aparecer de corpo inteiro
também, que ornamenta a dianteira das embarcações.
Tal escultura serve geralmente para evocar o nome da nave e também
para afastar maus espíritos. Servindo para este último
propósito, a cabeça de proa é quase sempre uma
criatura feroz, com feições sombrias, fechadas, feitas
na medida para impor o medo. Estou falando aqui da carranca.
A origem
da palavra carranca é controversa, segundo o Houaiss. Não
tem etimologia. Mas ao se fazer um exercício imaginativo
pode-se aproximá-la por semelhança do verbo carregar.
Essa sugestão ganha ainda mais força quando se verifica
que outro atributo, além de sombrio, para expressar a feição
da carranca é justamente a adjetivo carregada. Carregar
é adicionar algo a algum lugar. Porém, quando algo está
carregado, em sentido figurado, significa que há um excesso de
carga, como quando nos referimos a um “perfume carregado”. A
carranca só é carranca porque apresenta as feições
carregadas e, por isso mesmo, medonhas.
Deriva de
carranca, o qualificativo carrancudo.
O carrancudo é aquele que, além da fisionomia, tem
carregado o espírito e, devido a isso, seus fluidos corporais
não circulam bem. Na antiguidade, tais fluidos corporais eram
chamados de humores e eram tidos como determinantes das condições
físicas e mentais do indivíduo. Hoje, essa crença
antiga sobrevive quando dizemos que alguém está de mau
humor querendo nos referir exatamente ao carrancudo. Este, aparte de
ser um doente de corpo, é sobretudo um doente de espírito,
já que está carregado.
Simples:
alguém permanece carregado
enquanto não descarrega. Então, quando se está
carrancudo, de mau humor, basta que se encontre uma atividade que
permita o descarrego do que está obstruindo a boa circulação
dos fluidos do corpo para que se volte a ter um bom humor. Quando a
carga são os sentimentos de tristeza e raiva do dia-a-dia, por
exemplo, assiste-se a uma comédia, escuta-se heavy
metal, da-se um tapa na cara de
alguém, na cama de preferência... E por ai vai. Contudo,
há casos em que o descarrego não é tão
simples. Há pessoas que simplesmente não conseguem
descarregar. O caso do bufão Pagliacci, que aparece em uma das
edições da HQ Watchmen,
é um exemplo clássico. A estória é mais
ou menos esta:
Eu escutei uma piada uma vez:
Um homem vai ao médico.
Diz que está deprimido.
Diz que a vida é dura e cruel.
Diz que se sente só em um
mundo hostil.
O doutor diz: “O tratamento é simples.
O grande bufão Pagliacci está na cidade.Vá assistir-lhe.Isso deve animá-lo.”
O homem cai em prantos.
Diz: “Mas, doutor... Eu sou Pagliacci.”
Para
além da questão psiquiátrica – e, portanto,
médica – que Pagliacci possa suscitar, ele faz aparecer uma
questão filosófica. É possível pensá-lo
através de uma tipologia. O tipo representado por Pagliacci é
o daquele que simplesmente não é capaz de descarregar –
afinal, ele é o profissional do riso e ele próprio não
consegue rir! Foi Nietzsche quem primeiro pensou em descrever a
tipologia daquele que, como Pagliacci, simplesmente não é
capaz de descarregar. Na nomenclatura nietzschiana, trata-se do
fraco, do doente, do escravo – todos nomes para designar uma mesma
noção.
É
na Primeira Dissertação de sua Genealogia da
Moral (1887), que Nietzsche
expõe essa tipologia. Porém, para entender propriamente
o que é o fraco, é preciso antes entender aquele a
partir do qual ele se constrói, isto é, o forte.
O
forte é aquele que apresenta um excesso de força
e por isso não tem como não moldar o ambiente em que
está inserido, sem que para isso tenha que pedir permissão
– afinal, só se pede permissão para algo maior,
entretanto o forte já é ele mesmo o algo maior.
Decorrente disso, o forte apresenta certa imprudência,
apresentando uma exaltada impulsividade na cólera, no amor, na
vingança. Isso faz com que, mesmo que apareça nele
alguma forma de mágoa, ela se consuma e se exaura numa reação
imediata. Em outros casos, nem sequer aparece, porque não é
característica sua levar a sério por muito tempo o
inimigo. Quando este não é abatido num átimo é
porque possui força comparável a sua e, por isso, é
digno de veneração, não de desprezo. Resultado é
que o forte esquece e
não guarda ressentimento, mesmo quando não consegue
abater o inimigo de uma vez.
Ao
contrário, o fraco não esquece, dado que não
pode descarregar sua mágoa. O fraco não possui
alternativas – e em todas elas sua memória é atiçada
–, a não ser i)
ou curvar-se diante do inimigo e, portanto, servir-lhe de escravo ii)
ou aguardar a oportunidade sorrateira de abatê-lo. O não
esquecimento do fraco ilustrado por Nietzsche através da
metáfora do caldeirão do ódio
insatisfeito. A metáfora
sugere que o ódio é preparado como se fosse um artigo
de culinária. Desse caldo repugnante, cozinhado
permanentemente, resulta o ressentimento.
Do conteúdo do caldeirão, o fraco se nutre. E se, como
diz o ditado, você é o que você come,
o fraco se torna por excelência o homem do
ressentimento.
Não
é que o ressentimento, causado pelo ódio contido, não
acometa também o forte1;
no fraco, porém, ele envenena de tal modo que nada mais o move
– e a palavra usada por Nietzsche é exatamente esta: veneno.
Por não conseguir colocar para fora o veneno, em outras
palavras, por não conseguir descarregar, o que caracteriza o
fraco é o mau humor, em oposição à
jovialidade característica do forte, que por isso mesmo é
espirituoso, engraçado, bom humorado.
Nietzsche
costura a sua Filosofia da História a partir do que ele chama
de a revolução escrava na moral.
Ela começa quando o ressentimento se torna criador e gera
valores – o ressentimento dos seres aos quais é negado o ato
de descarregar o veneno. Em oposição aos valores do
forte que são essencialmente violentos, quando vistos da
perspectiva de quem não é forte, o fraco passa a gerar
valores contrários. Onde se tem o copioso, o fraco opõe
o ralo; onde o conturbado, o plácido; onde o imprudente, o
disciplinado. Nietzsche diagnostica, mas se opõe a tal estado
de coisas. No fim do parágrafo 12, da Primeira Dissertação,
da Genealogia da Moral,
lê-se:
Hoje nada vemos que queria tornar-se maior, pressentimos que tudo desce, descende, torna-se mais ralo, mais plácido, prudente, manso, indiferente, chinês, cristão – não há dúvida, o homem se torna cada vez “melhor”... E precisamente nisso está o destino fatal da Europa – junto com o temor do homem, perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a esperança em torno dele, e mesmo a vontade de que exista ele. A visão do homem agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem...
A
revolução escrava na moral
se traduz na lenta consolidação do niilismo,
ou seja, no “cansaço” que se sente quando se tem por guia
o que Nietzsche considera como valores apequenadores do homem, em
outras palavras, tudo o que o afasta do que seria o forte e tudo o
que o aproxima do que seria o fraco. Utilizo o verbo ser
no futuro do pretérito porque, de fato, os tipos nietzschianos
não foram feitos para se concretizar, mas tão somente
para servir de parâmetro comparativo para diagnosticarmos as
hábitos gerais e individuais de nós mesmos.
Dessa
maneira, é possível encontrar este ou aquele que age
conforme esta ou aquela característica do forte ou do fraco,
mas nunca o forte ou o fraco efetivamente. É assim que, ainda
que não endossemos completamente o niilismo como fio condutor
da História, isto é, que não entendamos a
História como a narrativa que conduz ao apequenamento do
homem, é possível fazer uso da tipologia nietzschiana
e, com ela, não perder de vista o seu aviso de que o homem
apequenado “cansa”.
Muito
em decorrência dessa sua posição, Nietzsche via
com maus olhos muitas medidas introduzidas pela modernidade, como a
igualdade clamada e conquistada pelos movimentos sociais e a
consequente suavização das relações
humanas daí advinda. Afinal, como assegurar que o clamor por
igualdade social não se traduziria em uma prática
consolida de nivelar as práticas por baixo e,
consequentemente, de aceitar a mediocridade como parâmetro? Por
isso é pouco provável que Nietzsche reconhecesse os
benefícios de práticas de suavização como
as iniciadas pelo movimento “politicamente correto”.
Entretanto,
nós, adeptos da democracia liberal, devemos manter posição
contrária a de Nietzsche. Podemos entender que o
“politicamente correto” foi resultado de um movimento que iniciou
com o intuito de conduzir a conversação pública
para níveis de suavidade necessários, níveis
exigidos inclusive desde que a arcaica sociedade de mercado começou
a se implantar. Não seria razoável discordar que, de
fato, mudanças semânticas se traduzem em mudança
de hábitos. E do campo filosófico para o campo
político, o “politicamente correto” resultou em um
aperfeiçoamento da democracia, fez com que ela se tornasse
menos cruel.
Em
um primeiro momento, não poderíamos permanecer como em
O Mercador de Veneza
(1596) de Shakespeare, ou seja, a continuar publicamente cuspindo na cara
de judeus, se é deles a quem cristãos fidalgos
recorrem, ainda que às escondidas, quando precisam de
dinheiro. Em um segundo momento, não poderíamos
continuar, como bem mostra a série de televisão Madmen (2007-) criada por Matthew Winer, a utilizar vocabulários inferiorizantes para negros e
mulheres se, de um lado, eles são quem em sua maioria consomem
e, então, fazem o mecanismo econômico funcionar e se, de
outro lado, elas estão no mesmo ambiente de trabalho que nós,
até mesmo em cargos de chefia que outrora monopolizávamos.
Em outras palavras, dentro do movimento do “politicamente correto”,
aprendemos que não devemos ofender gratuitamente grupos
emergentes ou potencialmente emergentes que podem vir a fazer crescer
a vida do mercado, melhorando ao mesmo tempo esse mesmo mercado.
Democratas
liberais como nós não devemos esquecer dessa origem do
“politicamente correto”. Porém, também não
podemos fugir da auto-crítica, ainda mais quando vimos os
frutos, nem sempre tão bons, provindos dele. O exemplo mais
recente em nosso País foi noticiado no último domingo.
Os professores de cursinhos de preparação para
vestibular estão tendo que não mais utilizar as tão
famosas piadas que utilizam em sala de aula – chistes, sabemos
todos, entendidos por muitos como portando conteúdo racista,
machista, xenófobo etc.
Como
bem ressalta Hélio Schwartsman, em seu artigo de hoje (13/08)
na Folha de São Paulo, intitulado “Juventude carrancuda”,
há duas questões nesse caso.
A
primeira é lembrar que esses gracejos constituem o cotidiano
de qualquer cursinho desde que eles surgiram. Professores de cursinho
são conhecidos por serem mais sagazes, exatamente por
possuírem aquele time
que falta aos professores de colégios regulares. Coisas dessa
peculiar prática docente que tem que dar conta de chamar e
manter a atenção de uma infinidade de cabeças e
fazer com que dali saiam o máximo de aprovações
no vestibular, de modo a manter no topo publicitário a instituição para a qual trabalha – seu emprego
depende disso. Seu salário é maior também, o que
faz toda a diferença. Além disso, lembro outro fato que
Schwartsman não menciona: os alunos que geralmente frequentam
cursinho estão ali por que querem, afinal não se trata
de uma obrigatoriedade do ensino regular. E se estão ali
volitivamente, o empenho e o entrosamento que se espera é
totalmente outro, o clima em sala se torna muito mais amistoso,
propenso mesmo a comentários espirituosos, chistosos,
engraçados, típicos de uma roda de amigos.
A
segunda é lembrar o que fizemos há quatro parágrafos,
ou seja, recordar que, considerado em si, o “politicamente correto”
nada traz de prejudicial, ao contrário, como ele diz, pode ser
visto como um “efeito colateral de um movimento civilizador, que
foi a mobilização da sociedade para conter seus
impulsos racistas e sexistas”. A conclusão de Schwartsman é
a de que reprimir as piadas dos professores de cursinho pode até
conter-lhes o conteúdo ofensivo, porém reprime
igualmente o humor que, em suas palavras, “priva a vida de seus
sabores”.
Penso
que Schwartsman foi suave na conclusão. Tenderia mais a
concordar com Nietzsche e dizer que antes de nos privar de seus
sabores, medidas como essa nos privam da própria vida e de
tudo o que ela tem de afirmador de jovialidade. Acusar professores de
cursinho de ofensores de minorias é descontextualizar
totalmente o jogo semântico estabelecido em sala de aula de um
pré-vestibular. Atacar-lhes por essa via equivale e tirar-lhes
a espontaneidade e, consequentemente, todo o diferencial que
apresentam em relação aos demais. Não bastam
todos os ataques estruturais que a educação formal
obrigatória já sofreu, agora desferem golpes até
na sala de aula não obrigatória.
Não
tenho como não comparar atitudes como essa como participando
da tipologia do homem do ressentimento.
O título do artigo de Schwartsman é indicativo,
“juventude carrancuda”. Trata-se exatamente do jovem mau
humorado, aquele que, como eu disse antes, além da fisionomia,
traz o espírito carregado. O jovem que acusa, nesse contexto,
o professor de racista, sexista, xenófobo ou seja lá o
que for, pende muito mais para aquele aluno que não consegue
entrar no jogo educacional que, sabemos nós – que somos bem
sucedidos nos estudos e não tiramos só notas altas,
como também tiramos vivências do que estudamos –, não
se faz por uma leitura fria e formal do conteúdo disciplinar,
mas sim no jogo de pensar na hora, de argumentar no improviso, de
participar do riso espontâneo causado pelo espanto da
descoberta intelectual. O aluno que reclama do professor por motivo
tão mesquinho é, sem dúvidas, o típico
carregado que é incapaz de descarregar. Sua única
alternativa, uma vez que não consegue se livrar do
ressentimento de nunca aprender nada, é tirar a vitalidade de
quem entra no jogo educacional. Quando o “politicamente correto”
se torna sinônimo de censura, estupidez e incapacidade de
humor, assume as vezes do que fazia a Educação Moral e
Cívica, imposta pela Ditadura Militar (1964-1985). Quando uma
ferramenta liberal se torna um instrumento despótico, é
preciso se erigir contra e lembrar que um martelo é feito para
martelar pregos e não cabeças. Ou talvez nem isso
lembremos mais. Talvez já estejamos todos cansados
é de martelar.
__________________________________
1“Mesmo
o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se
exaure numa reação imediata, por isso não
envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros
casos em que é inevitável nos impotentes e fracos.”
(§ 10, Primeira Dissertação, Genealogia da Moral)
3 comentários:
Quem sabe os professores deveriam fazer piadas inteligentes em vez de preconceituosas, afinal eles estão ensinando matemática, química, biologia... Acho desnecessário uma piada de cunho preconceituoso dentro de uma sala de aula, se o professor achar difícil, que tal ele tentar um emprego como humorista de standup comedy. Aí sim um espaço adequado para esse tipo de humor.
Cara, um comentário que nem o seu é de quem não tem a mínima noção do que é a relação pedagógica, de como ela se deu historicamente e de como ela se dá em círculos de liberdade. Que tal pesquisar o que era a Academia platônica por exemplo que, na porta, já era discriminatória, dizendo "Mantenha-se longe aquele que não souber Geometria"? Não há piada discriminatória ou preconceituosa em si mesma, avaliada independente da situação. Pensa nisso mais um pouco - sugestão minha.
Como poucos do ramo sabem, numa sala de aula, tudo pode servir como matéria prima para o objeto do conhecimento - até mesmo chistes. Não importa se provêm de docentes ou discentes, isso também vale para qualquer ambiente onde há inter-relação humana. No jogo maduro, os comentários, mesmo maliciosos, podem ser produtivos, desde que não sufoquem um porvir lúdico. Acima de qualquer coisa, está o crescimento com alegria (sem tristeza, sem carrego).
Parabéns pelo desenvolvimento do assunto. Achei showwwwww!!!
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