Após ser jogado do ônibus lotado, Sebastião enxugou sua blusa. Um bêbado acabara de vomitar no coletivo, e pingos daquele suco gástrico tinham-lhe caido na roupa. Isso, porém, não abalava o ânimo daquele trabalhador. Quando desceu da lotação eram dez horas da noite. Chegou em casa às onze e meia.
Exausto, Sebastião adentrou em seu cortiço, subiu as escadas, andou o longo corredor e entrou na quinta porta à esquerda. Estava escuro. Estendeu o braço direito e precionou o interruptor. Nada aconteceu. Novamente. Nada. Não importava. Já sabia de cor o caminho até sua cama: dois passos para frente, dois para o lado direito – desviando da mesa –, mais três passos para frente e. “Ai!” Eram só dois passos. Sebastião errou o cálculo porque estava alto. Tomara uma dúzia de latinhas no bar do Jacinto.
Bar do Jacinto, forró arrochado tocando, cheiro de cerveja em lata e cigarro vagabundo, piso de cimento enrrugado, mesas e cadeiras de ferro enferrujado dispostas da pior maneira possível. Sem esquecer das três mesas de sinuca, dispostas paralelamente a uma pequena distância dos convivas.
No auge da música “...pega fogo, cabaret!”, Sebastião, insatisfeito, grita para o garçom:
– Frederico companheiro, desce mais uma!
– Não, Bastião. Tá vendo a placa? – apontou para a parede logo abaixo do balcão, onde havia uma pintura de um olho azul – “Fiado só quando esse olho piscar.”
– Chama o seu Jacinto!
– Pode falar. – expectorou Jacinto que estava ao lado de Frederico.
– Seu Jacinto, o senhor está ai? – surpreso, disse Sebastião.
– Diga, Bastião. – expeliu-se uma voz macilenta do rosto abatido de seu Jacinto.
– Não, é que... eu queria mais...
– Não, Bastião.
– Posso falar?
– Não pode, não.
– Não posso falar?
– Não.
Silêncio.
– Então, tá. Não volto mais aqui. – pela quinta vez naquele ano, desabafou Sebastião a seu Jacinto.
Vinte minutos depois, estava dentro do ônibus, linha zero quatorze. Se estivesse em outro clima, diria que o veículo estava apinhado. Como estamos em Manaus, clima equatorial, digo: havia tanta gente que fazia lama.
De tão lotado o carro, Sebastião só conseguiu lugar atrás. Os braços levantados segurando a barra de ferro na horizontal, rente ao teto, exalavam cachorro molhado. As barras na vertical eram alguma coisa parecida com um eixo imaginário – posto que não se via – encapado por mãos pardas que convergiam de vários lados. Sebastião olhou para aquilo e imaginou-se numa floresta em que as árvores tivessem uma rugosidade chamuscada e abrigassem galhos de diferentes espécies no mesmo tronco, igualmente híbrido. Perdido nesse devaneio, suas pálpebras se encontraram e aderiram-se de forma tão tenaz quanto a mordida de um jacaré a uma perna perdida. Ao contrário, suas mãos iam-se afrouxando das barras de ferro tal a argila sólida exposta à água corrente. Desabou feito um uma onda que atinge o pico e não pode mais subir. Abriu-se uma lacuna no meio daquele labirinto de gente.
– Que que isso? – uma voz penetrante foi ouvida.
– Ai! – um grito rouco e nada viril foi aos píncaros.
– Puta que pariu! – uma voz escapou por uma bouca que quase não se abria.
– Motora, abre a porta do meio! – exigia um coro mesclado.
O motorista continuava com o ônibus a oitenta por hora e não dava atenção à turba que ele sabia gostava de fazer muito barulho por nada. Ouvia-se uma percussão improvisada logo acima da porta do meio “Tum, tum tum!”
– Abre a porta do meio, motorista!
– Motora, a porta do meio!
– A do meio, companheiro!
“Tem, tem, tem!”, ouvia-se a cobradora bater com uma moeda no vidro da janela, localizada nas suas costas. No intervalo das bicudas investidas, a mulher com o uniforme rosa grania:
– Jandir! Abre que tem um bêbado que tá enchendo o saco aqui dentro!
O motorista, ao ouvir a voz da cobradora, freou o carro, não de modo brusco, mas súbito o bastante para jogar os passageiros uns três metros a frente cada um. O bêbado Bastião foi junto. Acordou com a imprevista contenção.
– Caramba, seu Jacinto, eu já vou sair do seu bar. Não peço mais fiado. Prometo.
A porta do meio abriu-se. Uma tontura já prevista acometeu Sebastião. Seu estômago revirou. O esôfago começou a fazer os movimentos peristalticos às avessas, sugando o líquido que ainda se encontrava no estômago. Feito Chaplin que era expelido pelas engrenagens da fábrica, assim a bebida voltava do intestino de Sebastião em direção ao piso do ônibus. Jorrou-se feito a água de uma caixa d'água que transborda. Pingou éter clorídrico na roupa dos passageiros e na camisa do próprio Bastião. Mal tinha levantado a cabeça, dirigindo a mão para limpar o resto de ácido que ficara no canto da boca, foi segurado pela gola e conduzido gentilmente para fora do ônibus.
– Sujou toda a minha camisa nova, seu bêbosta!
Após ser jogado do ônibus lotado, Sebastião enxugou a blusa e a boca que ele vomitara inteiras.
Um comentário:
Me vi na própria Manaus e suas mazelas, e não tive saudades... Ainda não.
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