Fedro, escritor nascido na Trácia, vinte anos antes de Cristo, sofreu perseguição por parte de indivíduos da alta classe política romana da época e, ao fim, foi condenado ao exílio, vindo a falecer na miséria anos depois. A perseguição estava intimamente ligada à natureza de sua atividade: escrever fábulas.
Uma fábula é uma narrativa curta com personagens animais que agem como seres humanos e que ilustra um preceito moral. Em outras palavras, fabular é transformar indivíduos em modelos e fazer com que histórias corriqueiras tornem-se mais que triviais. Não é preciso que o fato narrado tenha ocorrido, nem os personagens existido. É comum, entretanto, que isto ou aquilo disparem o gatilho criativo do fabulista. Sua escrita, porém, é sempre universal.
Universal quer dizer um termo abrangente aplicável a todos os indivíduos de uma mesma classe de objetos. Por exemplo ‘cadeira’ é um universal que se refere a todas as cadeiras existentes, inclusive a esta em que me sento para escrever este texto. Compreender essa noção, porém, quando se relaciona a ideias mais complexas que a citada, requer algo além de capturar sua definição, por dois motivos.
O primeiro é que um universal é algo abstrato, e abstrações exigem concentração de quem as interpreta e também algum conhecimento prévio. Já sabemos o quanto a dificuldade de se concentrar não é um mal exclusivo de nossa época e talvez seja um defeito de nossa tribo humana.
O segundo é que, quando um universal é exemplificado, isto é, tornado particular para efeitos pedagógicos, corre-se o risco de se chamar mais atenção a este que àquele. Isso ocorrendo, os mesmos sem concentração e conhecimento prévio a que me referi no parágrafo anterior muito facilmente tomam o exemplo pelo que se pretendia exemplificar.
É assim que muitos acessam a alegoria da caverna de Platão: tomam-na não por uma imagem de uma narrativa mais abstrata, mas por uma imagem de algo concreto, uma caverna efetiva. Sair de seu interior, então, passa a ser algo possível. Daí a compará-la com a TV, como o fez José Saramago, é um pulo.
Da mesma forma age quem não sabe lidar com universais tão corriqueiros como ‘homem’, para ficar num caso apenas. Pensa-se que ‘homem’ é este ou aquele indivíduo e não se é capaz de dissociar um do outro. Diógenes, o filósofo cínico que viveu quatro séculos antes de Fedro, ficou para a história, entre outros feitos, por ir até a praça pública, empunhando uma lanterna em plena luz do dia, à procura de um homem. Sabiamente, utilizando-se da ambiguidade entre universal e indivíduo, contida na palavra utilizada, fez troça com os cidadãos que ali se encontravam e que não entenderam a ridicularização.
Permanecemos ridículos hoje quando, ao tomarmos um pelo outro, consideramos que, quando um escritor descreve um personagem cujas características nos são familiares, o que está em jogo é este ou aquele indivíduo. Vamos além quando nos ofendemos e passamos a odiar o artista. Fedro passou a ser odiado porque suas estórias, universais que eram, abarcavam muitos casos individuais de sua época. Você pode entender isso como a usual carapuça servindo.
O ódio, porém, não se localiza no tempo, nem no espaço. Todo artífice de universais está passível de ser odiado por um indivíduo descontente. A dificuldade de entender universais talvez seja mais uma armadilha intelectual a ser evitada -- como um ídolo baconiano --, para que consigamos chegar a uma apreensão mais próxima à verdade. Saibamos disso e nos esquivemos. Esse conselho, claro, não atingirá os que parecem ter nascido para odiar. A estes, é pertinente reavivar uma fábula de Fedro:
O lobo e o cordeiro
Ao mesmo rio vieram, compelidos pela sede, o lobo e o cordeiro.
O lobo estava mais acima, e o cordeiro bem mais abaixo. Então, o predador, incitado por sua goela maldosa, encontrou motivo de rixa: “Estou a beber e tu poluis a água!”
O lanoso, tímido, responde:
“Como posso fazer isso de que te queixas, ó lobo? De ti para meus goles é que o líquido corre.”
Repelido pela força da verdade, ele replicou:
“Cerca de seis meses atrás, falaste mal de mim.”
O cordeiro retruca: “Eu? Então eu sequer era nascido...”
“Por Hércules, teu pai é que me destratou!”
Em seguida, dilacera a presa, dando-lhe morte injusta.
Escrevi essa fábula por causa daqueles indivíduos que oprimem os inocentes por razões fictícias.
2 comentários:
Após atingir certo grau de consciência, entendi que sabedoria não é para muitos e, por isso, não cabe exercitá-la em praça pública. É como se jogássemos pedras preciosas aos brutos, que apenas irão pisá-las.
Ainda não atingi esse grau, pai, e por enquanto perambulo pela praça, não portando, mas em busca da sabedoria. Dizem que ela brilha como o sol. Com minha lanterna à mão, ainda não consegui enxergar. Talvez tenha que esperar amanhecer.
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