Todos sabemos que os velhos são sábios. Eles já percorreram o
caminho que os jovens, muito provavelmente, percorreremos.
Escutá-los, então, é vantajoso. O que torna essa vantagem mais
acessível ainda é outra característica que eles – com a exceção
de Seu Lunga – partilham: o gosto pela conversa. Céfalo, pai do
ilustre sofista Lísias, é um velho que entrou para a história da
Filosofia por partilhar desse gosto.
No início do Livro I, da República de Platão, Céfalo descreve
assim sua afinidade: “na medida em que vão murchando para mim os
prazeres físicos, nessa mesma aumentam o desejo e o prazer da
conversa” (328d). Sócrates, que também era um amante de
discursos, não deixa escapar a oportunidade e inicia o que ele mais
gostava de fazer: o jogo de fazer perguntas e escutar respostas.
Sócrates pede o parecer de Céfalo sobre a velhice, se ela se
trata, como dizem, de uma parte custosa da existência. Por sua vez,
Céfalo lembra que é bem verdade que os velhos, quando reunidos,
põem-se a lamentar com saudades dos prazeres da juventude, dos gozos
do amor, da bebida, da comida. Porém, citando um dito de outro
velho, o tragediógrafo Sófocles, recorda que uma das grandes
vantagens da velhice é justamente a possibilidade de se livrar de um “amo delirante e selvagem”.
Essa imagem forte usada por Céfalo refere-se ao corpo e as suas
afecções, em contraposição à moderação da parte racional da
alma. Na doutrina platônica, é mais sábio aquele que menos se
deixa influenciar pelo corpo e tudo o que dele deriva – desejos
incontroláveis de comer, beber e foder, por exemplo, todos tão
exigentes e vorazes com um bando de “déspotas furiosos”, outra
imagem forte usada no diálogo. Céfalo encarna essa sabedoria porque
soube chegar à velhice, sem as reclamações saudosistas do corpo,
através não de qualquer dom especial ou riqueza material, mas sim
através da prática da moderação.
Nesse trecho da narrativa de Platão, o velho é o sábio, ou
seja, aquele que passou por todas as experiências da mocidade e, uma
vez na velhice, através da prática da moderação, não mais se
deixa afetar pelo delírio e pela selvageria do corpo. Livre desse
tirano, há espaço para atividades mais nobres, como a conversação.
Porém, há um problema. Céfalo que tanto alegara gostar de
conversar, após algumas frases, foge da conversa. Por que?
O objetivo maior da República de Platão é discutir
filosoficamente a justiça. Céfalo, em termos narrativos, cumpre o
papel de inserir a primeira tese a ser discutida, a saber, a de que a
justiça é “dizer a verdade e restituir aquilo que se tomou”
(331d). Sócrates logo encontra um problema ai e refuta a tese de
Céfalo com um exemplo: “se alguém recebesse armas de um amigo em
perfeito juízo, e este, tomado de loucura, as reclamasse, toda a
gente diria que não se lhe deviam entregar, e que não seria justo
restituir-lhes, tampouco consentir em dizer toda a verdade a um homem
nesse estado” (331c). Céfalo, então, refutado, sai pela tangente
– “Eu, por mim, faço-vos entrega da discussão, pois tenho de ir
tratar do sacrifício [aos deuses]”. A conversa mudou de
característica: mudou de um simples jogo de perguntar e ouvir
respostas para um jogo de pedir e fornecer razões.
O sábio, ao contrário do filósofo, não se insere no último
jogo. O filósofo, ao contrário do sábio, só sabe jogar se, uma
hora ou outra, o primeiro descambar para o último. O sábio e o
filósofo, ambos gostam de conversar. Só o filósofo, porém, ama
verdadeiramente os discursos. E não por um contato maior com o discurso verdadeiro, mas por uma disposição maior para refutar e ser refutado,
no lugar de ensinar e aprender. Amar ou é estar preparado para todas as consequências que derivam da relação com o objeto de amor ou não é. Preferir algumas e não outras é, no máximo, "achar legal".
2 comentários:
Gostei do texto. De fato pude notar na primeira interação com vocês(Veteranos do curso) a disposição de ouvir, refutar e ser refutado, quando pude falar de minhas crenças pessoais. Isto é fantástico na Filosofia! Poder discutir, ouvir, aprender e se deliciar nas ideias...
Haja competência!!!
Parabéns! Texto primoroso.
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