Em um evento do PIBID/Filosofia/UFRRJ, intitulado “A aula de
Filosofia: debatendo propostas para o Ensino Médio”, em 2014,
foram apresentados vários trabalhos que meus colegas de curso vêm
desenvolvendo em sala de aula. Dentre eles, um sobre feminismo causou
uma pequena discussão, não pelo conteúdo do projeto nele mesmo,
mas pelo uso, durante a apresentação, de um impertinente verbo,
considerado inadequado por alguns presentes. A colega que estava
apresentando o trabalho, em determinado momento, soltou algo do
gênero “O nosso objetivo era fazer com que o assunto fosse
discutido de forma acessível, mas sem prostituir a filosofia”.
Pronto. O projeto desenvolvido foi esquecido e os comentários se
voltaram para a palavra maldita.
– A palavra é ofensiva nela mesma, e também o fato de ela ser
alguém que está pesquisando o feminismo não permite que use esse
tipo de vocabulário –, defendeu outra colega, em conversa
particular.
– Ela, antes de tudo, de pesquisadora inclusive, é estudante de
filosofia, filósofa até. Usar palavras é o que fazemos em
filosofia, e o uso provocativo é um deles. Assim mesmo, o contexto
em que ela a utilizou não foi provocativo – defendi eu, à época.
Penso que duas premissas estão implícitas no argumento da
colega:
1) Não é dado a um pesquisador utilizar sem cuidado um vocabulário, tanto por implicações conceituais quanto por implicações sociológicas;
2) Há palavras cujo teor ofensivo não depende de contexto.
Concordo com a primeira premissa implícita. Não tenho o que lhe
acrescentar, ainda que pense que, ao caso, ela não se aplique, pela
razão já alegada. Com a segunda premissa, entretanto, tenho
reservas (mas volto a ela, em alguns parágrafos).
Foi a reação de parte do ativismo antirracista a uma esquete
do último episódio do programa de humor da Rede Globo de Televisão,
“Tá no Ar: a TV na TV” que me fez voltar a pensar o caso.
A esquete consistiu em representar como seria se a venda de
escravos do séc. XIX tivesse que ser anunciada com os meios que
conhecemos de publicidade atuais. Uma vez que, ontem, vender escravo
era tão comum quanto, hoje, vender artigos do lar, o raciocínio
utilizado foi o de emular uma grande rede de vendas desse gênero. As
famosas Casas Bahia foram parodiadas em uma de suas peças de
publicidade mais lembradas: o famoso “Quer
pagar quanto?”.
A esquete foi engraçada. Aliás, por si só, a peça das Casas
Bahia já é engraçada, e imitá-la é meio caminho para conquistar
a gargalhada do espectador. Ela é tão engraçada que o ator que
nela atua é até hoje lembrado – não sem um sorriso jocoso de
canto de boca – como “o garoto das Casas Bahia” ou “o ator do
Quer pagar quanto?” e não por Fabiano Augusto (que, por sinal, é
o seu nome; aposto que você não sabia; antes do Google, nem eu,
confesso). Além disso, alguns elementos indicam que ela, a esquete,
pretendeu-se crítica e não mera reprodutora do senso comum.
Ao ligar a venda de escravos (algo abjeto e legalmente banido) à
venda de artigos do lar (algo corriqueiro e politicamente
incentivado), o efeito é de estranhamento, não de acomodação.
Algo que é banal (a venda de artigos domésticos) torna-se estranho,
porque, em invés de riso automático e indiferença, vem o riso
nervoso que favorece o seguinte comentário: “E pensar que comprar
escravo já foi tão comum quanto comprar geladeira”. Faz pensar
que mentalidades arraigadas mudam e que talvez nossas crenças atuais
possam simplesmente não ser consideradas relevantes no futuro. Ao
perceber isso, não estamos longe de dizer algo mais reflexivo como
“E por que caralhos estou rindo disso?”.
É claro, entretanto, que essa é só uma interpretação
possível. Outra é a de Douglas Belchior, afro ativista que escreve
sobre diversidade e direitos humanos, no Blog
Negro Belchior, no site da Revista Carta Capital.
Em artigo intitulado “Rede
Globo: O racismo ‘Tá no Ar’ ou ‘Quer açoitar quantos?'”,
Belchior defende a seguinte tese: não se deve fazer piada com a
escravidão. Segundo sua leitura, tudo o que a esquete faz é mostrar
“homens e mulheres postos à venda e nos lembrando que sempre fomos
– negros e negras – tratados como mercadoria, desumanizados e
coisificados […]”. Para Belchior, o humorístico não só não
rompe com a “lógica estrutural que organiza o pensamento racista”,
como “fortalece e fomenta o racismo” ao incentiva o “esteriótipo
racial”.
O que seria, mais claramente, a “lógica estrutural que organiza
pensamento racista”?
No meio de seu artigo, Belchior cita uma fonte que talvez ajude a
responder essa questão. De acordo com o trecho, racismo consiste em
agir associando traços fenotípicos a desenvolvimento cognitivo e
comportamento social. Assim, o racista age atribuindo automaticamente
determinado comportamento a alguém, levando em conta somente a cor
de sua pele. A “lógica estrutural que organiza pensamento
racista”, então, se é que entendi bem o seu raciocínio, consiste
no conjunto de atos que, de alguma forma, reproduz a associação
automática entre a cor da pele e determinado comportamento,
incentivando o que ele chama de “esteriótipo racial”.
Em um esforço maior para compreender o raciocínio de Belchior
(embora eu entenda que não foi seu intuito formulá-lo de forma
silogística), desmembro-o a seguir:
a) É preciso combater o racismo;
b) Piada sobre escravidão reproduz a “lógica estrutural que organiza pensamento racista”;
c) Logo, não se deve fazer piadas sobre a escravidão.
Seu raciocínio, se é que o entendi corretamente, é
aparentemente impecável. A premissa a) é irrefutável. Ninguém,
sob o atual sistema jurídico brasileiro, iria de encontro a ela. A
premissa b), caso se concorde sobre o que é a “lógica estrutural
que organiza pensamento racista”, também é irrefutável. Não se
pode negar que uma piada sobre escravidão, de alguma forma, deixa
margem para a interpretação do “esteriótipo racial”. As duas
premissas sendo irrefutáveis, então, a conclusão c) seria
verdadeira?
Penso que não.
Minha resposta é negativa porque não concordo com a excessiva
abrangência do que Belchior entende por “lógica estrutural que
organiza o pensamento racista”. De acordo com essa noção, todo
ato que encoraje, de alguma forma, o “esteriótipo racial”,
direta ou indiretamente, tendo seu autor ou não intenção, consiste
em racismo. Tal amplitude é socialmente perigosa e, no limite, leva
a uma caça às bruxas tão nefasta quanto o comportamento racista.
Uma maneira de lidar com esse problema é analisá-lo em seus
pressupostos conceituais. É o que farei a seguir.
O erro principal de Belchior é o mesmo erro do raciocínio de
minha colega, com o qual iniciei este artigo, isto é, ambos
pressupõem a seguinte premissa:
2) Há palavras cujo teor ofensivo não depende de contexto.
Para ambos, as palavras “prostituir” e “escravidão”
levarão uma carga negativa onde quer que estejam, com uma exceção:
elas podem ser usadas, desde que haja prévia permissão de alguém
relacionado ao movimento ativista em questão, seja feminista, seja
negro. A regra é que determinadas palavras, só aos iniciados é
dado o poder de pronunciá-las.
Belchior diz:
“Mesmo que a intenção dos humoristas do ‘Tá no Ar’ tenha sido criticar o racismo na televisão brasileira, há de se perguntar: ‘Os grupos que reivindicam direitos para a população negra fazem piada com a escravidão? O Movimento Negro faria?’ […] Houve uma pesquisa dirigida à população negra para aferir como se sentem, tendo sua imagem e sua história satirizada em rede nacional? Eu, como descendente de pessoas escravizadas não me senti confortável com a piada.”
Neste trecho, Belchior confirma a interpretação segundo a qual o
ato racista é configurado de maneira meramente formal, isto é,
independente da intenção do autor e do contexto de seu discurso. Ao
mesmo tempo, elege um grupo que teria legitimidade para dizer o que é
racismo: caso a população negra ou o Movimento Negro dessem seu
aval, a piada poderia ser feita, o racismo não estaria configurado.
Declaradamente, o que o raciocínio de Belchior faz é reduzir uma
questão jurídica (racismo é um dos crimes mais graves de nosso
ordenamento jurídico: Constituição Federal, art. 5º, XLII) a uma
questão de ofensa grupal ou individual. Prevalecendo essa tese, no
limite, grupos e indivíduos teriam o poder de jurisdição, e
princípios democráticos como o do contraditório e o da ampla
defesa seriam abolidos, uma vez que pressupõem ambos um juiz que não
seja parte na causa, para que ouça o acusado sem interesse no caso.
Além do aspecto jurídico, há o aspecto filosófico, derivado da
aceitação da premissa 2) acima. Quem a aceita não está longe de
aceitar esta outra, mais abrangente:
3) Há palavras cujo significado não depende de contexto.
Para ilustrar isso, cito novamente Belchior:
“É possível também argumentar que o programa usa a estratégia da ironia para expressar uma ideia antirracista, entretanto, a imagem deveria falar por si mesma, não poderia dar margem para outros tipos de interpretações. Se, ao observar a imagem, é possível uma interpretação racista, a tarefa fora, neste aspecto, mal sucedida.” (SIC, grifo meu)
A ideia de que algo possa “falar por si mesmo” e que não
possa “dar margem para outros tipos de interpretações”
pressupõe 3), ou seja, pressupõe que exista algo que, ao contrário,
apresente uma, e só uma, interpretação. Bem, fora de uma linguagem
lógica formal, essa demanda não pode ser cumprida. A não ser, é
claro, que um regime de terror e exceção (como foi a Ditadura
Militar) seja instaurado e que se proíba manifestações contrárias
à ordem, abolindo-se a liberdade de expressão.
O que o raciocínio de pessoas como minha colega e Belchior deixam
de lado é que, pressupor palavras com significados independentes de
contexto fora do âmbito lógico-formal, tem por consequência
prática uma atitude autoritária com quem pensa diferente. O que
estou chamando aqui de atitude autoritária é, em nome do combate ao
racismo e ao sexismo (e outras doenças sociais), limitar o direito
de expressão de qualquer um que não reze na cartilha da militância
e não só de verdadeiros racistas. Essa atitude é contraprodutiva
para a própria militância porque a faz declarar guerra contra quem
não é inimigo e a só estabelecer aliança com quem já se aliou.
O que certa parcela do movimento pró-minorias não entende é que
não há como pressupor um texto que não seja polissêmico, uma vez
inserido no campo social de outros textos. O fato de haver
interpretações racistas possíveis da esquete humorística não
significa que ela seja racista em si, pelo simples fato que no âmbito
do discurso público não existe algo “em si”. A lógica de
manipulação de estereótipos contra a qual todos os movimentos de
minorias lutam parece, ao final de contas, ser tão forte que parcela
deles não consegue dela se livrar. Tudo o que sabe propor é
repeti-la, só que às avessas: ao denunciar uma hegemonia de
representação, apresenta outra. O problema permanecerá enquanto
houver quem, como minha colega e Belchior, faça questão de
permanecer dentro desse esquema conceitual: inventando um inimigo, em
vez de lutar contra o que já existe.
3 comentários:
Parabéns pelo texto. A sua crítica é perfeitamente aplicada a esse mesmo tipo de confusão em outros contextos (no campo da Literatura, por exemplo...)
Bem legal o texto. Gosto muito quando, na internet, faz-se esse trabalho de formiguinha de ir aos detalhes da argumentação para assim desmontá-la.
Um abraço
Sua sábia avó, se pudesse opinar, diria que "estão procurando sarnas pra se coçar". E eu lamento que continuem na superfície...
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