Já imaginou que você pode estar agora em um álbum de família de alguém que não conhece, em um país que você não sabe sequer pronunciar o nome em sua língua nativa? Pois é o que acontece quando você está caminhando pela rua e, de repente, flash! – sua imagem é capturada sem querer pela câmera de um turista como parte do pano de fundo de uma foto.
domingo, 16 de fevereiro de 2014
sábado, 8 de fevereiro de 2014
Sheherazade tal qual
Há uma
aparência de que a jornalista Rachel Sheherazade aprendeu com
maestria a prática de incitação ao crime (art. 285, Código Penal
Brasileiro). O seu último discurso polêmico na TV pode levar a crer
que, de alegada vítima, ela passou a agente do tipo penal que tanto
condenou tempos atrás. Mas não é isso que quero discutir. É outra
coisa.
Sheherazade
defendeu os justiceiros que amarraram o suposto bandido ao poste pelo
pescoço, ao mesmo tempo que o desnudaram e o deixaram exposto nessa
situação por tempo considerável – sem falar no pedaço cortado
de sua orelha. Ataque compreensível e até misericordioso a um
marginalzinho que já vinha aterrorizando a vizinhança há algum
tempo, sem que a polícia tomasse providências – alguns diriam sem
pestanejar. Muitos de nós, brasileiros, já presenciamos algo assim
em nossas vizinhanças. Eu, quando morava em Manaus, já. A
vizinhança onde fica a casa de minha mãe vira e meche sofre desse
mau. Já pegaram um desses assaltantes, lá no Norte. Já o quase
lincharam. Eu vibrei, óbvio. Alguém exatamente como ele já
apontara uma arma para a cabeça de minha irmã, xingado-a de
vagabunda e roubando-lhe o notebook, enquanto ela ia trabalhar de
manhã cedo. Se fosse eu que tivesse encontrado o sujeito, não faria
diferente do que fez minha vizinhança.
Sim,
estou confessando um pecado, mesmo não sendo você, leitor, um
padre. Para mim é uma questão de honestidade intelectual. E diria
mais: eu desconfio enormemente de quem, passando pela situação que
passei, com um ente querido, não houvesse pensado como eu. Alguém
que não tivesse pensado como eu, provavelmente, seria uma pessoa que
pouco ou nada tem de leal com os que lhe são queridos. Defender, do
ponto de vista pessoal, o direito do “bandido”, em detrimento do
da vítima, ainda mais quando esta é sua irmã, é uma aberração
moral. Isso faz de mim alguém que é contra os direitos humanos?
Não.
Os únicos
lugares em que eu irei escrever “direitos humanos” são aqui e no
parágrafo anterior. Esse termo, de tão dito por gente que não faz
ideia do que seja, já se desgastou ao extremo. Usarei, então,
simplesmente a palavra Direito – no sentido mesmo de ordenamento
jurídico, somado ao conjunto de instituições que o executam, criam
e julgam. Por que esse termo é importante? Porque é ele que vai
dizer o que eu devo fazer com o meu pensamento pessoal: levá-lo a
cabo ou refreá-lo.
Vivo em
algo que se chama sociedade e sob o jugo de algo que se chama Estado.
Uma das explicações filosóficas do porquê eu me encontrar nesta
situação é explicada pelo contratualismo. Há várias
versões de contratualismo, mas é comum se dizer que, para quem
defende essa narrativa, a sociedade surge da seguinte maneira. Em uma
situação onde não há Estado, cada homem tem para si sua liberdade
inteira. Acontece, porém, que é comum que haja toda sorte de
conflito e de desentendimento entre eles, de modo que, na prática,
nunca é possível usufruir sequer a ínfima parte dessa liberdade.
Então, cansados de só viver no meio de temores e de encontrar
inimigos por toda a parte; fatigados de uma liberdade cuja incerteza
de conservação a torna inútil; os homens sacrificam parte de sua
liberdade para gozar-lhe do restante que lhes sobra com mais
segurança. Assim forma-se a soberania de uma nação, que consiste
na soma das porções de liberdade sacrificadas ao bem geral. Surge,
então, a figura do Estado, aquele que é encarregado pelas leis do
depósito das liberdades e dos cuidados da administração. Uma vez
criado, só ele pode tirar liberdades; os homens, uma vez sem parte
de suas liberdades, esperam que os demais respeitem-lhes as posses do
que eles ainda guardam de liberdade.
Nessa
linha, o Estado é limitador em sua origem, portanto. Ele limita para
poder garantir a liberdade, ainda que não inteira. Mas o que
Sheherazade sugere é que tal Estado não existe e que o que reina é
um estado de violência sem limite, tal qual o estado de natureza,
condição pré-estatal do homem. Tendo isso como premissa é
considerado legítimo o contra-ataque aos que ela chama de "bandidos”, não sendo o que os justiceiros fizeram nada mais que
uma “legítima defesa coletiva”. Sheherazade acerta? Quase. Se
não fosse por uma coisa...
O Brasil
possui um Estado!
É o
Estado Brasileiro, a quem também denominamos de um Estado
Democrático de Direito, que me diz o que devo fazer com a posição
pessoal que confessei acima. É de acordo com ele que, não mais
pessoalmente, mas publicamente, não defendo qualquer linchamento a
quem quer que seja, inocente ou culpado. É porque vivo em um Estado,
ainda que em grande parte omisso, que sei que minha lógica pessoal,
uma vez aplicada de forma geral, só irá se voltar contra mim. É
esse mesmo Estado que me faz distinguir entre justiça e vingança.
Será que Sheherazade, então, estaria defendendo uma espécie de
volta da Lei de Talião?
De novo: não.
Na letra
da Bíblia, a lex talionis seria o seguinte:
Mas, se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êx. 21.23-25)
É o
famoso olho por olho,
dente por dente. Porém, o que não atentamos quando falamos
desse preceito normativo é que ele já carrega em si um tanto de
civilização. O conceito jurídico primitivo expresso é o da justa
reciprocidade do crime e da pena. Etimologicamente falando, lex
é lei, e talis é tal, de tal tipo; de onde se tira a
seguinte ideia: tal crime, tal qual pena. Não nos
esqueçamos também que a primeira notícia escrita que temos desse
preceito é o Código de Hamurabi, lei escrita mais antiga (ou uma
das mais antigas) de que se tem notícia. Nela, já havia um poder
centralizado, portanto é possível pensar que não
houve uma simples transposição do que era oral, consuetudinário
para algo escrito. Talião guarda uma certa ideia de equilíbrio
baseado na ideia de retribuição equitativa do dano sofrido, coisa
completamente diferente do que conhecemos por vingança pessoal.
Quando há vingança pessoal, não há retribuição equitativa, o
que há é justamente o exagero na retribuição. Se alguém nos tira
um bem, tiramos-lhe dois bens; se nos insultam, quebramos-lhe a
perna; se matam alguém querido nosso, assassinamos-lhe toda a
família – eis a lógica da vingança pessoal. Ela nunca é
contida, sabemos.
É pelo
que expus no parágrafo acima que não posso dizer que Sheherazade
esteja defendendo a Lei de Talião. O que ela parece defender é algo
mais primitivo, algo mais afeito à vingança pessoal mesmo. Não
podemos dizer que o que os justiceiros fizeram com o suposto bandido
foi uma “legítima defesa social”, nas palavras da jornalista.
Legítima defesa pressupõe moderação. O que fizeram foi tortura e
humilhação pública – noções que não casam com moderação. O
bandido suposto já estava detido, não havia porque – exceto pelo
desejo de vingança pessoal – mantê-lo do modo como ele foi
mantido. Defender isso é defender um estado de coisas em que não
existe Estado; é não defender a volta da segurança pública.
Sheherazade fica, então, como já sabemos: tal qual sempre
foi. E não faltarão aqueles que a queiram seguir. Tal qual.
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