Eu poderia iniciar este conto tentando fazer algum suspense com o nome que apresento no título, tal qual fez Machado de Assis no seu Miss Dollar. Mas, ao citar Machado, o leitor mais atento já deve tê-lo lido e já sabe que este título daqui, tal qual o dele, nomeia uma adorável cadela. Não da aristocrática raça galga, mas da aburguesada cocker. E para proletarizar um pouco, uma mestiçada, ocreada e desgrenhada cocker spaniel – a Gabi.
Não é este aqui um
conto que tenha algum enredo digno de um Machado – cito-o mesmo só
para dar alguma credibilidade, ainda que tangencial, a isto aqui, o
que quer que isto seja. Ausente de gênio literário, isto aqui
é sem pretensão um tributo a uma das companheiras de vida minha.
Uma a quem eu não dei o devido valor quando ainda partilhava-lhe das
sendas. Não pretensamente, para emprestar mais pompa, desejo lhe
fazer também uma oração – senão à moda de, ao menos
mimeticamente a Péricles. Isto para não outra coisa que para tentar
redimir a mim mesmo, ainda que impossível de antemão.
Péricles para consolar
os pais, mulheres e filhos dos soldados mortos na Guerra, discursou
para eles não no sentido de exaltar as proezas individuais de cada
guerreiro, mas pela via de exaltar a qualidade dos cidadãos
atenienses como um todo. Na exaltação dos cidadãos, exaltava-se a
pátria, fazendo com que a morte ficasse diminuída em vista a
magnanimidade da causa a defender. Exaltarei o que os cidadãos da
Atenas canina representam focando num ponto que também é central na
narrativa periclínea: a bravura.
Quanto a esta
qualidade, os cães aproximam-se de nós (tudo bem: somente dos
melhores entre nós) não pelo fato de serem temerários – estultos
que não pensam antes de agir, como é a opinião de muitos –, mas
antes por se doarem de tal forma que facilmente abandonariam a vida
por alguém que amam. Lembro de um caso da Gabi que me marcou
profundamente e que me faz até hoje desejar o autoflagelo. Confesso:
na ocasião fui de uma covardia sem volta e ainda hei de expiar meus
pecados nesta vida ou em outra por lhe ter infligido tamanho mal.
Explico.
Sua filha tinha acabado
de parir a primeira ninhada; não lembro quantos filhotes. Mãe de
primeira viagem – vejam só o tipo de inaptidão humana que se
estende aos animais –, à cadela faltava o instinto de maternidade:
não se aproximava das crias para dar-lhes de mamar. Gabi, já então
bem mais experiente, dado o fato de já haver realizado pelo menos
umas três ninhadas anteriores, aproximou-se, altiva, dos
cachorrinhos e, com uma destreza natural, envolveu-os sob seu corpo
de modo que eles, sentindo-lhe o calor, rapidamente se dirigiram um
para cada peito seu, a fim de mamar. Repare que Gabi não os houvera
dado à luz, no entanto era ela quem lhes estava dando o alimento. De
que maneira? – o leitor perguntará, e eu responderei – Não faço
ideia! Verdade era que os cachorrinhos, depois de algum momento,
sentiram-se satisfeitos e puseram-se a cochilar ali mesmo.
Baby – havia me
esquecido de nomear sua filha, perdoe-me – deixou essa prática se
repetir com certa frequência não mais que dois dias; ao fim do
segundo, ensaiou sua primeira mamada, aproveitando que Gabi houvera
saído brevemente para fazer o que tinha que fazer no quintal. Baby
até que se saía bem. Quando Gabi voltou e se deparou com aquela
cena, pôs-se a, de longe, olhar aquilo por alguns segundos. Não
satisfeita, ensaiou uma aproximação, no que Baby torceu a boca e
rosnou, mostrando de leve os dentes. Gabi recuou, sem porém sair do
recinto. Limitou-se a rodar sobre seu próprio eixo e deitar a uns
dois metros de onde estavam Baby e seus filhotes.
A última frase do
parágrafo acima é propositalmente ambígua: filhotes de quem? De
fato eram de Baby; de direito, porém, Gabi certamente possuía
argumentos para apresentar em qualquer corte cível em defesa de sua
maternidade. Porém, dado que cães não possuem o mesmo estatuto
jurídico que nós outros – animais conscientes de nossas
responsabilidades que somos –, a querela tinha que ser resolvida
ali mesmo. E dado também que conversa entre elas não havia, um
acordo estava fora de cogitação. Em casos assim o melhor a se fazer
é chamar um árbitro. Sobrou para mim.
Gabi me encarava com
aqueles olhos de Gato de Botas e chorava de modo a amolecer até
mesmo um coração feito o meu. Baby me olhava com olhos de “Você
não vai cair nessa, né? Os filhotes são meus!” – eu não sabia
o que fazer. Fiz o mais aconselhável nestes casos em que não se
sabe o que fazer, ou seja, nada. Deixei ambas partilharem do mesmo
quarto. Afinal, tudo que Gabi queria era a companhia dos filhotes, e
tudo que Baby queria era ficar junto de seus filhos. Fui-me dali,
pensando ter tomado a providência mais adequada, não sem antes
recomendar à Gabi que respeitasse o momento de Baby e que não
avançasse em atitudes que não lhe eram permitidas; que se
resignasse à função de avó e que babasse os netos à distância,
ao menos neste período de lactação, depois ela os podia mimar o
quanto quisesse, oras! - “Entendeu, Gabi?”.
O leitor já imagina no
que deu minha resolução. As duas brigaram, ou melhor, Baby arrasou
Gabi ao chão, de modo que ela saiu de lá bem machucada, e eu não
diria só fisicamente. Para evitar novos combates, afastei Gabi dali
e, por meio de uma cancela de madeira, evitei que ela chegasse onde
estavam sua filha e seus netos. Mas não adiantou. Seu corpo estava
impossibilitado. Mas não seus lamentos. Gabi chorava feito uma
criança que não aceita que lhe tirem o ursinho de pelúcia
favorito. E chorava, e chorava, e chorava. Suas súplicas eram tais
que, com o passar do tempo, deixaram de inspirar dó e passaram a
inspirar um certo lado irascível da alma. Meu quarto fica
relativamente longe de onde estavam Gabi e seus lamentos, porém eles
eram de tal forma agudos que perfuravam qualquer obstáculo. Eu a
tirava de lá, e ela voltava. Trancava-a em outro recinto e seus
grunhidos aumentavam. Pedia-lhe que fizesse silêncio, com certa
grosseria ameaçadora até, e ela, depois de me olhar com aqueles
olhos de “Você tá brincando que eu vou obedecer ao seu comando,
né? Isso aqui é bem mais forte do que eu e você queiramos, e você
sabe!”. Tentei dar de ombros. Mas o leitor já sabe, a essa altura,
que não foi isso que fiz por último.
Sim, e isto merece um
parágrafo solitário, posto que o que eu falarei é infame: eu fiz
com Gabi o que Gabi jamais faria comigo: usei de violência física.
Alias, para que florear? Estou confessando uma covardia, um pecado
mortal entre amigos, uma deslealdade: eu bati em Gabi de tal forma
que ela não mais se lamentou desde então.
Depois do acontecido,
ela já não mais reclamava para si o direito sobre os filhos e
transigiu, de modo que Baby agora podia cuidar de sua prole em paz.
Porém, depois daquilo, eu me senti mal de tal forma que não pude
exprimir a mim mesmo, até ler estas palavras, anos depois, no romance de J. M. Coetzee, Disgrace:
No animal will accept the justice of being punished for following its instincts. What is ignoble is that, after a while, the poor animal begin to hate its own nature. It no longer needs to be beaten. It's ready to punish itself. At that point it is better to shoot it.
O leitor, assim como
adivinhou no início sobre o que seria este conto, também
já sabe o fim de Gabi: igual ao de Miss Dollar - “saindo um dia à
rua foi pisada por um carro; faleceu pouco tempo depois.” Mas, ao
contrário de Margarida, sua dona, que não pode evitar reter algumas
lágrimas, eu mantive os olhos e o coração secos.
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P.S. Perdão, Gabi, por havê-la punido por simplesmente querer cuidar da prole de sua cria. Perdão por não haver entendido a sua inevitável phýsis. Eu me curvo diante de ti à espera de perdão. Não o seu, que eu tenho certeza que já tenho. O meu, que, ainda que vir, não será maior que minha culpa.
Um comentário:
Grandes homens são assim por terem uma sensibilidade maior... e, por conseguinte, uma responsabilidade de igual tamanho.
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