"Se
abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil,
então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de todos os
saberes de que os seres humanos são capazes."
(Marilena Chauí)
“O
filósofo é um inútil”, há muita gente que não exitaria em
dizer isso. E usariam de manobras um tanto convincentes para sustentar sua
opinião. Diriam as seguintes coisas. “O filósofo não é útil na
discussão sobre se é devido ou não construir um teatro em uma
cidade”. “Isso é um assunto muito concreto”. “Coisa de
políticos em reunião com profissionais da construção civil e, no
máximo, também com profissionais da cultura”. “O filósofo não
é útil quando se discute métodos de sedução amorosa. “Conversa
de gente mais afeita à parte sensual da vida”. “O filósofo não
é útil nas discussões sobre qual o melhor experimento científico
a ser adotado”. “Quando ele se enreda nessas questões, não
passa de um conservador que atrapalha o inevitável curso do
progresso técnico”.
Para
concordar com os que dizem que o filósofo é inútil, podemos dizer
que, de fato, há discursos restritos a uma área, há discursos mais
apropriados a gente mais sensual – pessoas mais afeitas aos
sentidos que ao intelecto – e há discursos que a prática
científica considera conservadores e prejudiciais. Porém, não
transigindo totalmente, completaríamos dizendo que o discurso do
filósofo pode assumir todas essas formas e, ainda assim, ser útil.
Útil
como? O filósofo pode assumir diversas práticas. Duas
muito difundidas do que seria a sua por excelência são a postura
crítica e a postura contemplativa.
O
primeira é aquela que chama atenção para que não fiquemos no que
se nos mostra à vista. Se, por exemplo, algo nos parece engraçado,
a prática filosófica crítica diz: “Cuidado! Há coisa por trás
disso” – e completa – “Na verdade, o que é tão engraçado
para você traz sofrimento para outras pessoas, então não deveria
ser tão engraçado assim. Você está enganado”. São
palavras-chave na prática filosófica crítica as expressões “por
trás de” e “na verdade”, porque esse tipo de prática objetiva
mostrar sempre o que não está aparecendo, e que, uma vez exposto,
mostrar-se-á como o que é verdadeiro. A verdade não é o que
aparece, mas o que está escondido.
O segunda
é aquela que não se preocupa com o que é meramente necessário,
transitório e imediatamente proveitoso e que logo se consome, mas
sim com o que é eterno, aquilo que é perene, não modificado pela
interferência humana. A prática contemplativa busca aquilo que, no
transitório das coisas do mundo, pode levar ao que não muda; ao
conceito, por assim dizer. O filósofo contemplativo é conhecido
popularmente como aquele que pouco liga para as coisas corriqueiras
e que se volta para “questões sérias” e “dignas de reflexão”.
Esses
dois quadros representam de forma exagerada o modo como o filósofo é
comumente visto entre nós. De um lado, alguém que tem uma
habilidade muito especial de nos mostrar a verdade que a maioria não
enxerga – confundindo-se facilmente com uma espécie de guru –;
de outro lado, alguém a quem não interessa nada do que acontece ao
seu redor, alguém que só se importa com coisas “realmente
interessantes” – o que lhe pode conferir um ar muito distinto,
podendo-lhe garantir certo prestígio intelectual. Há quem os possa
considerar úteis, porém a utilidade que pretendo apresentar aqui é
diferente.
Por
utilidade aqui não entendo nada muito elaborado, tal qual um
conceito ou uma definição poderiam ser. Por utilidade aqui
considero simplesmente aquela noção que Sócrates toma como o que
surge quando se pode tirar algum proveito de algo (cf. Lísis,
210b-c). E de modo mais extenso, aquilo que aparece a partir de uma
competência que produz algum tipo de bem à comunidade.
Mas
que tipo de competência o filósofo possui que possa produzir algum
bem à comunidade? Podemos, para responder, voltar-nos
ao epigrama deste texto e ler o que a filósofa brasileira, Marilena
Chaui, escreveu. A partir dai, podemos concordar que, desde que o
filósofo nos ajude a ser menos ingênuos e menos preconceituosos,
ele nos estará sendo útil. E voltando à introdução deste texto –
surpreendente como possa parecer – ele pode cumprir esse papel
mesmo em questões concretas como a construção de teatros, em
questões sensuais como a melhor maneira de conquistar amorosamente
alguém e em questões técnicas como experimentos científicos.
Exemplos não faltam na história da filosofia para nos mostrar isso.
Vamos a eles.
Rousseau, Diderot,
D'Alembert e a questão do efeito pedagógico do teatro
A questão de qual a
melhor maneira de promover a virtude em um povo é um tema perene na
filosofia. No séc. XVIII, ela surgiu de um fato que pareceria banal
à percepção comum.
No clima do Iluminismo,
é conhecida a produção da famosa Enciclopédia dirigida
por Diderot e que tinha a pretensão de impelir os homens ao livre
uso da razão para que saíssem da menoridade intelectual, como
afirmou Kant. Dentre os verbetes, houve um, escrito por D'Alembert,
que chamou a atenção de Rousseau. Era o verbete sobre a cidade de
Genebra. O problema
identificado por Rousseau foi o de que D'Alembert gastou nada menos
que um oitavo do texto falando não sobre o que havia na cidade, mas
sobre o que nela faltava: um teatro de comédia.
Mereceu atenção
especial o que para nós não passaria de, no máximo, um verbete mal
escrito. A construção de um teatro, algo que hoje só preocuparia
políticos, artistas e alguns poucos cidadãos mais cultos, fez
Rousseau iniciar um debate filosófico sobre o efeito pedagógico do
teatro, escrevendo uma carta a D'Alembert que ficou registrada na
história da filosofia. Não cabe agora discorrer a respeito da
posição tomada por cada filósofo. Fica o exemplo de como uma
questão filosófica pode surgir de algo banal.
Sócrates e a arte
erótica como arte filosófica por excelência1
Sócrates é comumente
tomado como sendo o autor do dito “só sei que nada sei”, frase
popularmente entendida como significando uma ignorância constante a
respeito das coisas – sendo esta a atitude mais condizente com o
que seria o verdadeiro filósofo. Nada mais errôneo. Sócrates nunca
disse isso; pelo contrário, ele se dizia muito sabedor num tipo de
arte que considerava filosófica por excelência: a arte do amor
(cf.
O Banquete, 177d-e).
No Crátilo (cf.
398d), Sócrates estabelece a relação filológica entre amor
e conversação. Através de uma investigação etimológica, ele
mostra que amor (Eros) tem a ver com a atividade de formular
perguntas (erôtan). E, tendo em vista que sua atividade
filosófica consistia basicamente no jogo de formular e de responder
perguntas, é possível entender a atividade erótica característica
de Sócrates, ou seja, a capacidade de entreter, através da
conversação sedutora, o interlocutor e fazê-lo entrar no jogo
filosófico que, por isso mesmo, não deixa de ser erótico.
O erotismo dos gregos,
e de Sócrates em particular, não privilegiava a dupla conotação
atual de sexo casual e de amor romântico. Para Sócrates, Eros
deveria ser posto a serviço da melhoria do amado. O namoro, então,
seria a atividade de “gerar e dar à luz no belo” (cf. O
Banquete, 206e), que primeiramente se confundiria com o amado,
mas que, no decorrer da atividade erótica conduzida corretamente,
seria voltado para o verdadeiro belo, a Forma de Belo, completando-se
a atividade filosófica. Saber a melhor forma de namorar,
então, é essencial.
Dado esse contexto,
pode-se entender melhor o porquê que se interessar na sedução
amorosa é uma prática filosófica e não somente de gente dada à
parte sensual da vida. A filosofia depende do amor (não esqueçamos
que philia é também amor) e é por isso que, no Lísis,
Sócrates abre o diálogo perguntando a Hipotales como era seu método
de sedução. No decorrer da conversa, Sócrates mostra que seu modo
de conquista é errado e lhe mostra o correto. Novamente, uma
situação que para nós é banal tornada altamente filosófica.
O discurso ético
como propiciador do progresso da ciência
A filosofia, e também
a religião, podem se posicionar de forma bastante conservadora
quando se trata de ciência. Porém, recentemente, no caso da
discussão sobre as células-tronco embrionárias, por exemplo, esse
conservadorismo paradoxalmente contribuiu para o progresso da
ciência.
O que aconteceu de
forma resumida foi que, ao se posicionar contra a pesquisa em
células-tronco embrionárias, mostrando as implicações éticas de
tal prática, a filosofia, e também a religião, forçaram a ciência
a buscar outros métodos para conduzir a pesquisa. O que de fato
aconteceu foi isto: a filosofia fui útil mesmo sendo conservadora;
e em um assunto em que diriam “filósofo, neste assunto, só serve
para atrapalhar”.
A filosofia é útil
Podemos tirar um
denominador comum dos três exemplos acima que pode nos ajudar a
entender o modo de proceder típico do filósofo. Os três começaram
com situações corriqueiras e não com questões “sérias”,
“dignas de reflexão”, “inteligentes” e tudo o mais que gente
cult gosta de considerar. Essas situações corriqueiras, uma vez na
mão do filósofo, ganharam uma interpretação inesperada, o que fez
com que elas se tornassem dignas de serem vistas de outra
perspectiva. O filósofo não mostrou nada “por trás” ou
“escondido”; o que ele fez foi evidenciar algo que todo mundo já
estava vendo, mas que ninguém dava a devida importância. O filósofo
saiu do caso simplesmente concreto, do caso meramente sensual, do
caso primariamente técnico e, partindo deles, fez ver o que neles é
geral e relacionado a todas as pessoas.
Nesse sentido que estou
tentando expor, o proveito que dele pode tirar a comunidade, ou seja,
a utilidade do filósofo é ajudar as pessoas a verem em casos
particulares a generalidade que relaciona a todos. E mais, é ajudar
as pessoas a lidarem com perspectivas que não são as já
consolidadas, as já dadas de forma gratuita, as que todo mundo já
teria de antemão. Tudo para que com isso, modestamente, as coisas
sejam vistas de um modo menos ingênuo e menos preconceituoso. Mas
isso depende, claro, de que o filósofo, como disse Péricles em sua
Oração Fúnebre, seja amante da filosofia e, conjuntamente,
esforce-se em não ser indolente. Difícil. Mas não impossível.
_________________________
3 comentários:
Oi Vitor. Assisti o seu vídeo do dia 18, que me levou ao blog.
Não vejo o devido reconhecimento do filósofo em nosso país.
Talvez nem nas escolas.
Acho uma negligência imensurável.
Acredito na importância da filosofia para estimular e desenvolver o espírito inquisidor, capaz de solidificar o caráter do indivíduo e modificar o que, ao meu ver, vem se tornando um futuro negativamente obscuro para a humanidade.
Ações como a sua devem sempre serem estimuladas.
Abraço, amigo!
McLuhan
Valeu pelo comentário, Mc - a quanto tempo! Bom, obrigado pelo incentivo. Mas eu devo dizer que não sou tão otimista quanto você quanto ao que a filosofia pode fazer. Não sei se ela pode solidificar o caráter do indivíduo como você diz. Entender melhor as coisas não faz de alguém moralmente melhor. Imagina que um doutor em Ética pode ser um crápula e um operário pode ser a pessoa mais honesta já venhamos a conhecer. Penso que a filosofia pode ser útil para nos tornar menos ingênuos e preconceituosos. Mas nada garante que, uma vez espertos e com os conceitos definidos, façamos deles o que é eticamente mais aconselhável. Mais ainda assim, agradeço muito o comentário. Divulga o texto e o vídeo, se puder me ajudar.
Olavo de Carvalho é filósofo.
Postar um comentário