Chegando
num parque que eu frequentava quando garoto, fui tomado por memórias
de infância, cada qual um fértil relato de um passado remoto. À
medida que eu ia me lembrando, cada relato escoava no próximo, e eu
comecei a testemunhar o desenvolvimento de um intrincado personagem
que eu chamo de “eu”. Todos esses relatos que eu tinha escrito na
minha experiência fluíam juntos para me fornecer uma única
história. Porém, refletindo sobre todas as experiências,
objetivos, peculiaridades e valores que tive, ocorreu-me que minha
identidade parecia mais esquiva que se poderia acreditar. Ruminando
sobre essas vertentes do meu passado, às vezes era como se eu
pudesse assistir ao desenvolvimento das minhas peculiaridades, à
evolução dos meus valores, meus objetivos sendo atingidos e
recriados; mas, em outros momentos, eles reiteradamente apareciam
para mim como se fossem elementos estrangeiros a minha paisagem
mental. Alguns dos relatos pareciam ser aspectos integrais de quem eu
era, enquanto outros pareciam se distanciar, quase como se o
personagem principal fosse uma pessoa diferente.
Ponderando
melhor, comecei a pensar se haveria mais sobre minha identidade que a
intuição ou o senso comum poderiam fornecer. O que me intrigou foi
o fato de que eu me considerava uma pessoa única, com uma identidade
única, ainda que “me” vendo como algo ainda não decifrado. O
garotinho que tem o mesmo nome que eu e que aparece nos meus relatos
parece ser tão diferente da pessoa que eu sou hoje, mesmo que eu
tenda a incorporá-lo na minha identidade de pessoa única. O que é
que me faz uma pessoa única através do tempo com uma única
identidade? Poderia ser meu corpo – já que sou e tenho sido um
único organismo biológico? Ou é a minha mente – posto que meus
estados psicológicos se interconectam de tal maneira que constituem
um só continuum? Também comecei a pensar: “Em que ponto da minha
vida eu me tornei uma 'pessoa'? Quando eu adquiri 'personalidade'?”
Isso me levou a pensar sobre uma série de questões: “Aquele
garotinho era realmente a mesma pessoa que eu sou hoje?”, “Se eu
enlouquecesse, eu poderia ser considerado a mesma pessoa de antes?”
De repente, minhas reflexões tinham me levado a sérias questões
metafísicas e filosóficas. Uma escura tempestade de confusão e
lampejos de pensamento apareceram, apenas para iniciar um arco-íris
espetacular de insights no meu céu psíquico.
Diferentes
teorias da identidade
Normalmente,
de modo intuitivo acreditamos que nossa identidade permanece
constante através do tempo. Reconhecemos mudanças em
características específicas etc., mas mantemos a crença da
“verdadeira” identidade das pessoas. Se o seu bom amigo Greg
afirmar que ele não é a mesma pessoa de cinco anos atrás, não
suporíamos que ele fosse agora uma pessoa numericamente diferente;
nós consideraríamos essa afirmação como uma figura de linguagem a
denotar que Greg passou por importantes situações na sua vida, ou
que ele sofreu algumas drásticas mudanças nas suas características
mais singulares. Mas quando perguntamos “O que é que faz com que
uma pessoa persista como a mesma pessoa através do tempo?”,
podemos realmente dizer o que é que dá aos seres humanos as
identidades pessoais únicas que nós assumimos que eles possuem?
Muitos
filósofos tentaram resolver a questão da identidade pessoal gerando
várias teorias a respeito. Farei uma sinopse das duas principais
explicações, mencionando alguns dos principais jogadores e seguindo
de modo a reconciliar essas visões opostas com uma explicação
híbrida do que constitui uma identidade pessoal que persiste através
do tempo como uma identidade individual numérica, em outras
palavras, o que faz uma pessoa única.
As duas
grandes – e rivais – explicações de identidades pessoais em
filosofia tem sido teorias físicas ou baseadas no corpo e
teorias psicológicas da identidade permanente. Das duas, as
dominantes são aquelas que aderem a alguma forma de critério
psicológico de continuidade da identidade pessoal. Porém, antes de
se aprofundar nessa questão, gostaria de sumarizar a explicação
física.
O
critério de continuidade corporal para a identidade pessoal
afirma: para que uma pessoa em um determinado tempo (t1) e uma pessoa
em um tempo posterior (t2) sejam numericamente iguais (ou seja, para
que retenham uma identidade única que persiste com o passar do
tempo), a pessoa em t1 (P1) e a pessoa em t2 (P2) devem possuir o
mesmo corpo. Se é possível dizer que o corpo em questão é de fato
o mesmo corpo, apesar das mudanças em relação às suas partes
individuais ou composição material particular, então P2 é de fato
a mesma pessoa que P1.
Essa
visão foca no corpo como um todo: um único corpo humano que pode
ser expresso como a mesma matéria física que o corpo anterior
apesar de algumas diferenças descritivas. Por isso, se seguimos a
existência do corpo físico que recebeu o nome “Greg” ao nascer
até o mesmo corpo crescido com a idade de vinte e cinco anos, apesar
de várias diferenças físicas, poderá ser dito que ele é de fato
o mesmo indivíduo a quem se deu o nome de “Greg” na infância.
Nessa teoria, portanto, o que importa para a continuidade da
identidade da pessoa é a existência contínua de uma única
entidade física. (Versões mais complexas e elaboradas dessa teoria
tem sido propostas por David Wiggins e Eric Olsen).
Por outro
lado, teorias psicológicas afirmam que o critério para a
persistência da identidade pessoal é a relação entrelaçada dos
estados psicológicos dos indivíduos. Inicialmente, essa teoria foi
postulada por John Locke (1632-1704), frequentemente considerado o
pai do problema da identidade pessoal. Ele considerou a memória como
o único critério para a identidade. Depois essa teoria foi
revisada, por lockeanos e outros, de modo a incluir uma gama de
fatores psicológicos, não somente memórias, como forma de
explicação da identidade pessoal singular através do tempo. Essas
teorias mais sofisticadas focam primariamente na continuidade
psicológica ou na conectividade psicológica ou, ainda,
na fusão das duas, e frequentemente apoiam-se na ideia de “estágios
da pessoa” (uma pessoa em t1 é um estágio da pessoa; em t2, é
outro estágio etc.)
Tipicamente,
a teoria da continuidade psicológica afirma que para que P1 em t1
seja idêntico a P2 em t2, alguma continuidade de memória e
personalidade precisa ser reconhecível entre P1 e P2. A teoria da
conectividade psicológica, rigorosamente relacionada à teoria da
continuidade psicológica, sustenta que algum tipo de conectividade
psicológica é necessária entre os estágios da pessoa para que as
duas possuam uma única identidade com o passar do tempo; porém,
diferente das teorias da identidade baseadas na memória, a
totalidade dos conteúdos dos estados psicológicos podem ser
utilizadas e analisadas para designar identidade. Emprestando um
sumário conciso do livro de Harold Noonan, “Personal Identity”
(1989):
“Tal
conexão é aquela que permanece entre uma intenção e o ato
posterior no qual essa intenção é executada. Outras conexões
psicológicas diretas são aquelas que permanecem quando uma crença,
desejo ou qualquer outra característica psicológica persiste...
Geralmente, qualquer ligação causal entre fatores passados e
peculiaridades psicológicas presentes (e não apenas memórias)
podem ser subordinadas à noção de conectividade psicológica.”
Objeções
e pessoas
Uma
refutação clássica ao simples critério da memória para a
identidade pessoal foi elaborada por Thomas Reid (1710-96). O seu
“Paradox of the Brave Officer” se dá essencialmente da seguinte
maneira. Considere uma criança que se torna um jovem e, em seguida,
um velho. Baseando-se apenas no critério da memória, poderia-se
dizer que a criança é conectada psicologicamente ao jovem, se o
jovem tiver uma boa porção de memórias da criança; e que o jovem
e conectado psicologicamente ao velho na medida em que o velho tem
suficientes memórias de sua juventude. No entanto, o velho pode
mesmo assim ser considerado psicologicamente descontínuo, ou seja,
desconectado com a criança, devido ao fato de que ele pode não ter
memória alguma de sua infância. Entretanto, como é possível que a
criança seja o jovem, e que o jovem seja o velho, ao mesmo tempo em
que a criança é uma pessoa diferente do velho? “Obviamente, essas
objeções atingem o alvo [o simples critério lockeano de memória],
mas elas não vão muito além disso”, escreve Noonan (p. 55). Ou
seja, ainda que poderosa na sua época, essa objeção falha em ser
uma objeção adequada a teorias contemporâneas de continuidade
psicológica, que dizem que desde que haja um conjunto contínuo de
ligações de memórias entre a criança e o velho, eles podem ser
considerados a mesma pessoa. Então (por exemplo), desde que o velho
possa lembrar de que foi o jovem, e o jovem possa lembrar de que foi
a criança, o velho é a mesma pessoa que a criança.
Um
argumento influente mais a favor das teorias psicológicas que das
físicas foi proposto por Derek Parfit, no seu “Reasons and
Persons” (1984). É o seguinte. Um indivíduo entra em uma máquina
de teletransporte na Terra, perde a consciência e acorda em outra
máquina de teletransporte em Marte. A máquina na Terra é um
“escaner”, e a máquina em Marte é um “replicador”. Uma vez
que o escaner copiou os estados precisos de cada molécula do corpo
da pessoa, ele transmite as informações ao replicador em Marte e
simultaneamente destrói completamente o corpo na Terra. A partir de
matéria completamente nova, o replicador em Marte cria um corpo que
é uma réplica exata do corpo anterior. A pessoa, então, sai do
replicador sem o pensamento de que ela não é contínua com a pessoa
na Terra e, então, pode ser considerada a mesma pessoa. Portanto,
essa pessoa possui continuidade psicológica, mas não corporal com a
pessoa da Terra.
Apesar do
seu predomínio na Filosofia, há objeções às teorias psicológicas
da identidade pessoal. Uma delas pode ser chamada de “o problema da
duplicação”. É possível que um dia surja uma máquina que seja
capaz de gravar tudo sobre os estados psicológicos de alguém e de
transferir essa informação a um novo corpo, ou até a mais de um
corpo. Esse caso é parente de uma variação do teletransporte de
pensamento de Parfit, no qual o replicador funciona mal e produz
várias réplicas do corpo teletransportado. Nos dois casos, mais de
um indivíduo possuirá precisamente os mesmos estados psicológicos,
e todos eles estarão conectados com a pessoa anterior. De acordo com
essa crítica, o critério psicológico deve ser falso, já que
ficaríamos com duas ou mais pessoas encorporadas que, de acordo com
o próprio critério, seriam legitimamente consideradas contínuas à
mesma pessoa. Intuitivamente, isso parece absurdo.
Outra
estória da identidade
Enquanto
os defensores do critério psicológico e os advogados do critério
corporal continuam a duelar, inventando divertidos e intrigantes
experimentos de pensamento baseados em ficção científica, nenhum
dos dois conseguiu de forma satisfatória derrotar o oponente.
Cada
campo de teóricos tentou capturar algo do que faz um ser humano ser
uma única pessoa. Entretanto, nenhum deles parece capturar outro
elemento integral da nossa existência, a saber, que nós tendemos a
definir a nós mesmos através da contação de estórias. Conhecemos
um ao outro aprendendo sobre a história de vida de cada um e nos
relacionamos com outros com base nos seus valores, ideologias,
crenças, personalidades etc., todos sendo transmitidos por
narrativas orais, escritas ou por qualquer outro meio. Portanto, uma
resposta alternativa à crise de identidade filosófica tem sido a
proposta de que o eu humano ganha sua identidade através da
narração. Essa posição é conhecida como a teoria da
identidade narrativa.
Todos os
teóricos da identidade narrativa sustentam, em algum grau, que a
identidade das pessoas são narrativas auto-criadas –
alegando que a narração, ou a contação de estórias, é a maneira
pela qual nos apresentamos a nós mesmos, a outros, e representamos
os outros ao nosso redor. O teórico da narrativa está tentando
capturar aquele elemento da experiência no qual dizemos “Ei,
diga-me a sua estória” ou “Eu conheço você porque eu ouvi
estórias a seu respeito”.
Nessa
perspectiva, quem é (e quem não é) alguém depende das estórias
de seu passado e das estórias de quem se deseja se tornar; dos
objetivos que se tem e das ações levadas a cabo para chegar a eles;
dos valores herdados narrativamente ou vindos por reflexão e por uma
auto-contação de estórias; do lugar que se ocupa (emplotment)
como personagem em uma estória de vida, interagindo com as estórias
de outros. O teórico narrativo, portanto, toma habilidades
linguísticas humanas e orientações quanto a objetivos como fatores
que desempenham um papel importante na aquisição de uma identidade
única enquanto pessoa. Alguns teóricos tem sustentado que o eu
pessoal é o resultado de uma narrativa unificada e interativa;
outros, o centro virtual de vários fluxos narrativos; outros, ainda,
mantem uma posição mais existencial, enxergando o eu como um
vir-a-ser constante, evoluindo à medida que se interage com o meio
ambiente e que se reflete sobre a própria vida. Entre os
proeminentes defensores da identidade narrativa estão Daniel
Dennett, Alasdair McIntyre e Paul Ricoeur. Embora com abordagens
diferentes, todos eles tentam capturar características da condição
humana que os teóricos anteriores deixaram de fora, ou seja, a
importância de nossas história de vida, imersão cultural, direção
a um objetivo e auto-criação.
De
volta à vida
Embora
essas teorias sobre o que faz você continuar a ser quem você é
possam parecer obscuras e abstratas, elas mantém de fato alguma
influência sobre a vida humana e as preocupações que surgem no dia
a dia – especialmente no campo médico, em que somos confrontados
com questões envolvendo morte cerebral, estados vegetativos
permanentes, comas, testamentos e outros dilemas psiquiátricos. De
um jeito ou de outro, tudo isso traz questões relacionadas às
várias teorias apresentadas.
Saindo da
minha estada no parque e tendo refletido sobre os grandes mistérios
da condição humana, perguntei a mim mesmo: “Não pode que eu
seja, ao mesmo tempo, dependente de minha conectividade psicológica,
de minha constância biológica e de minha história de vida?”
Ainda que eu não tenha conseguido um milagroso avanço filosófico
durante o meu passeio, espero ter fornecido algumas pistas de
reflexão com este sumário de posições sobre a “crise de
identidade filosófica”.
Texto
traduzido por mim do original:
DURANTE, Chris. “A Philosophical Identity Crisis”. Philosophy Now Magazine, julho/agosto, 2013. Disponível no site: http://philosophynow.org/issues/97/A_Philosophical_Identity_Crisis. Acesso em 17/08/2013.
DURANTE, Chris. “A Philosophical Identity Crisis”. Philosophy Now Magazine, julho/agosto, 2013. Disponível no site: http://philosophynow.org/issues/97/A_Philosophical_Identity_Crisis. Acesso em 17/08/2013.
O autor do artigo, Chris
Durante, possui PhD
em Ética, MA em
Estudos Religiosos e Msc
em Filosofia de Distúrbios Mentais. Seus interesses em teorias da
identidade e da personalidade alcançam uma variedade de campos,
incluindo Bioética, Filosofia, Religião Comparada e teorias
sociopolíticas. Leciona na McGill University de Montréal e também
na Marymount Manhattan College
e na St John's University,
ambas em Nova York.