Este, apesar de ser menina, é o típico "viadinho" |
Há situações de nossa infância que formam a base necessária para um bom convívio
social que só vamos perceber depois de algum tempo. Se não aprendemos com elas quando pequenos, o relação em grupo depois de adulto se torna uma tarefa difícil. É claro que nem sempre isso se
dá de uma maneira soft. Quando crianças, quase não lhe
atribuímos valor. Achamos péssimo até, dada a rispidez com que
frequentemente acontecem. Porém, uma vez crescidos e aptos a revisitar
a situação, percebemos que foram momentos essenciais e que não
poderiam se dar de forma diferente. É o caso de eventos em que
frases do tipo "Deixa de ser viadinho!" acontecem.
Lembro
de pelo menos dois casos que ilustram o modo peculiar e ao mesmo
tempo universal em que aprendi regras éticas básicas que
construiram minha personalidade. O primeiro caso trata de não deixar
os amigos na mão e de cuidar dos seus próprios problemas; o
segundo, de não reclamar por coisa pequena. Todos eles tem em comum
a lição de aprender com o que fez de errado e nunca mais voltar a
fazer. A frase mágica que me fez lembrar dessa reprimenda é o
"Deixa de ser viadinho!"
O
primeiro se deu numa das memoráveis tardes em que jogava bola na
rua. Reunia-se aquela matilha de meninos - e meninas às vezes -
para jogar futebol. Qualquer coisa servia de trave, até pedaço de
tijolo quebrado. Usavamos tanto para demarcar o gol quanto para
riscar o chão e desenhar as linhas de meio-de-campo e de escanteio. Ao final da brincadeira, quando não
tinhamos dinheiro, revesavamos quem de nós iria em casa e pegaria água
para os restantes; quando tinhamos alguma grana, faziamos uma cota e
compravamos bolacha recheada Parmalate com Coca-Cola. Repartir era
comum, mas sempre havia aquela disputa para pegar mais bolachas ou a
maior quantidade de refrigerante. Nessa hora, exercitavamos sem saber
a lealdade para com o grupo ao mesmo tempo que aprendiamos a não
medir força com quem era mais forte - ser leal e prudente, ao final
de contas. Porém, havia casos, fora do contexto do final da pelada,
quando voltavamos da escola ou coisa do tipo, em que iamos até a
mercearia mais próxima e compravamos individualmente nossa própria
bolacha e nossa própria Coca-Cola. Quando conseguiamos não
encontrar nenhum colega do caminho da taberna até a casa, tudo bem.
Mas quando encontravamos, era certeiro: tinhamos que dividir o
lanche. Sempre alguém pedia, poderia até não estar com fome na
hora, mas pedia. E tinhamos que dar, porque do contrário, quando
chegasse na hora da partilha, seriamos vistos como egoístas. Uma
vez, porém, antes de saber disso, eu cai na besteira de negar
bolacha para um colega.
Estava
eu e mais outro saindo da mercearia quando a uns poucos metros
avistamos o Danilo, garoto mais velho que morava a umas casas de
distância rua abaixo. Trocamos olhares os três, quando o Danilo
pediu:
- E ai,
Cabeça, me dá uma bolacha?
Eu,
fominha e com fome, disse:
- Eu
não, cara. Vai comprar uma pra ti. Eu to com fome e nem merendei
ainda.
Ele me
olhou com uns olhos de "Pode deixar que eu te pego depois..."
e me deixou ir. Eu, meu amigo e meu pacote de bolacha juntos com a
Coca-cola seguimos. No outro dia, a lição se deu. Era a hora da
bola. Brincamos e no final ninguém tinha dinheiro, exceto o Danilo.
"E agora?", pensei, "Como é que eu vou participar?"
Segui com minha cara de pau. Até que chegou a hora de comermos, e o
Danilo falou:
- Todo
mundo vai comer, menos o Cabeça.
Eu fiz
menção de protestar, no que ele prontamente me interrompeu:
- Cala a
boca se não tu vai levar o teu já, já.
No que
eu provoquei, teimosamente:
- Vem,
se tu é macho!
Ele, mas
rápido e forte, levantou antes que eu, mais pesado e fraco, pudesse
reagir e me deu um sonoro tapa na cabeça. E logo após começou
aquela sinfonia de vaias e provocações dos meninos ao redor -
pressentindo cheiro de briga, menino é pior que cachorro quando está
em bando.
Eu, já
com lágrimas nos olhos, disse que iria contar para minha mãe.
Para que eu fiz aquilo?
Começou
a zoação, e dentre as frases mais ouvidas estava:
- Deixa
de ser viadinho! Vai contar pra tua mãe, vai, seu viadinho!
O
segundo caso é mais rápido e também aconteceu no contexto do
futebol.
Faltas
são comuns em um jogo - essenciais eu diria, dado que sem elas a
disputa seria muito menos emocionante. Porém, sempre há aquelas que
machucam mais que outras. Os menos habituados ou os novatos sempre
pedem arrego quando se veem diante de uma dessas. Comigo não foi
diferente.
Numa das
disputas, eu sofri reiteradas faltas e, à medida que o tempo ia
passando, meu sangue ia chegando perto do ponto de ebulição. Até
que na última falta, explodi e empurrei o colega. Ele, como o
Danilo, mais forte que eu, deu-me uma rasteira que me fez cair de bunda.
Aquilo doeu em dobro, porque, além da dor física, deixou-me numa posição jocosa que provocou riso geral. Com isso, a dor
no corpo passou e veio a dor da vergonha. Enevitável: chorei.
Para que eu fiz, novamente, aquilo?
Veio a já habitual sinfonia:
- Olha o
filhinho da mamãe.
- Deixa
ele, que ele não sabe brincar, não.
- Além
de esquentadinho é chorão.
Até que
o mais implacável de todos, inflexivelmente, veio:
- Deixa
de ser viadinho! Vai embora que ninguém quer brincar com chorão
aqui, não!
À
primeira vista, as duas situações
acima descritas podem parecer, no vocabulário corrente, bulling.
E podem até ter sido! Todavia, ao invés de causar traumas,
fizeram-me entrar num círculo ético e vivenciar valores que
dificilmente os meus pais ou qualquer escola lograriam êxito em
ensinar. Lealdade, solidariedade, não-egoismo, cuidar dos próprios
prblemas, não reclamar de coisas pequenas, agir conforme o contexto
são coisas essenciais para qualquer ser humano. Os que nunca ouviram
o "Deixa de ser viadinho!" ou coisa parecida dos seus pares
quando criança, uma vez adultos tornam-se pessoas que, no limite, não sabem se comportar em grupo. Isso são coisas que se adquirem na primeira infância, e a maneira peculiar de aprender não pode ser diferente.
Enfim, quando
alguém, hoje, confunde o "Deixa de ser viadinho!" com uma
ofensa homofóbica (como se houvesse alguém saudável que ainda se
ofendesse em ser chamado de viado [!]), isso me deixa triste e
irritado. Triste porque eu sinto o fato da pessoa não ter vivenciado
experiências que lhe teriam permitido ser alguém com um trato
social mais sofisticado. Irritado, posto
que sei que estou diante de um chato que pode ser melhor descrito como "o ofendidinho". Pessoas assim não percebem que sofrer alguma admoestação de vez em quando é saudável, mesmo quando já se é adulto. Afinal de contas, sempre é hora de deixar ser viadinho.